30/09/2015

OS INFILTRADOS: UM JOGO DE IMPOSTURAS

“Os Infiltrados” é, a princípio, um grande filme policial conduzido por reviravoltas. Mas o que o torna tão especial na filmografia de filmes policiais e derivados produzidos nos últimos anos é que a duplicidade assumida por Scorsese, aqui, ultrapassa os caracteres narrativos propriamente ditos. As voltas do roteiro, os diálogos de efeito, os plotwists e circunstâncias que arrebatam e explodem a cabeça de quem assiste são tão somente o primeiro nível da diversão que o diretor exalta. Há um duelo de máscaras por trás de tudo. A entrega de Scorsese está na observação que faz das imposturas próprias de um cinema que é, antes de tudo, mais puro cinema. Na tela, “Os Infiltrados” se alimenta de um cinema para o qual o ato de encenar conduz, não somente a história contada abertamente em si, mas todos os seus sentidos interiores.

Em retrospecto, embora todos os filmes de Scorsese condensem, em certa medida, a pura ficção no ato de criar figuras e dinâmicas que só são possíveis a partir de uma fantasia suja que se ajusta a determinadas medidas de realidade, em outros filmes esse movimento é mais contido se em comparação com “Os Infiltrados”. "Goodfellas" e "Cassino", por exemplo, por terem a áurea da máfia como centro, têm suas imposturas limitadas em função de um grau maior de realidade que parecem carregar. Em “Os Infiltrados”, no entanto, Scorsese parece mais solto e disposto a abusar desse jogo.

O recorte de realidade que inicia o filme serve apenas para situar, brevemente, os personagens em suas próprias naturezas. E ainda que novamente as figuras em cena façam parte do violento universo das máfias (da máfia irlandesa, dessa vez) o cosmos presente ali é mais sucinto. O interesse de Scorsese está em manipular, mais do que tudo, suas imposturas.

Frank Costello (Nicholson) talvez seja o exemplo mais didático na gama de personagens já que, apesar de ser baseado num sujeito que realmente existiu, o Costello do filme é exageradamente excêntrico, propositalmente esquisito, estranhamente engraçado e incomodamente simpático.


Costello interpreta outra versão de si mesmo, o tempo todo. Não é difícil imaginá-lo como um garoto que assistia filmes como o “Scarface” de Hawks e que agora, velho e respeitado em seu meio, brinca, quase literalmente, de ser gangster (a cena da negociação com os chineses é primorosa nesse sentido). E se sua máscara serve de blindagem para ele em seu próprio habitat, elucida também a proposta de Scorsese. Se o filme é sobre pessoas que não são exatamente quem dizem ser, nada mais coerente do que fazer com que o espectador também não consiga reconhecer quem são aquelas pessoas ou, mais até, fazer com que o espectador suspeite que aquelas pessoas estão fantasiadas da maneira que mais as agrada e, querendo ou não (por mais que pese na consciência) se divirta com isso.

Seguindo, outro exemplo é a figura de Dignam (Wahlberg), outro que, definitivamente, interpreta um personagem dentro de um personagem. O cabelo num gel impecável, o jeito de falar, a postura, os gestos e, obviamente, o coldre sob os braços são seu atestado. Dignam é, não por circunstância, mas por escolha, o policial mala, um “proud mothafocka” estrategicamente ensaiado. Por isso, aliás, é o melhor personagem do filme: há algo de digno num sujeito que não sente vergonha, pelo contrário, se diverte, verdadeiramente, ao ser um babaca que xinga sem razão e sempre propõe uma troca de murros para resolver discussões. É dele, vale dizer, a melhor fala do filme: "I'm the guy who does his job, you must be the other guy". A fala em terceira pessoa não é à toa.

O mesmo vale, em menor medida, para Ellerby (Baldwin), sujeito meio canastrão, que faz questão de discursar a seus supervisionados com voz imposta, peito estufado e mãos na cintura. 



Por falar em escolha e circunstância, um dos trunfos de Scorsese é retirar, com precisão, a carga de caricatura dos dois personagens principais, que usam suas respectivas máscaras, não por escolha, mas por circunstância. O dilema oculto que conduz ambos os personagens parece estar justamente na genuinidade identificável de suas identidades. Porque, para Scorsese, aqui, o importante é a certeza de que sua máscara caiba bem em você. Caso contrário, é treta. E que se dane essa história de essência. Assim, ao contrário dos outros personagens, Collin Sullivan (Damon) e Billy (Di Caprio), se revelam, aos poucos, desprotegidos.

Se Costello e Dignam, por exemplo, constroem suas falsas identidades como forma de proteção, conscientemente, e se organizam a partir disso, a dupla de protagonistas teve suas identidades determinadas por pura imposição Ambos cresceram sem família, sem referências, como se destinados a serem infiltrados e nada mais. Sullivan é um jovem calmo e influenciável, Billy é um jovem com tendência aos problemas. A chantagem, antes de tudo, é que delineia suas identidades. Não há muitos espaços para que se moldem. Assim, no futuro, quando o jogo de identidades se estabelece, tanto Sullivan quanto Billy se perdem e desmoronam aos poucos. É interessante, aliás, a cena do elevador que precede a elipse mais desconcertante do filme

Sullivan carrega a feição do jovem frágil. Billy carrega a feição do jovem problemático. Ambos são mais voláteis que todos os outros personagens. Scorsese acusa ainda sua diversão ao trazer à tona, na parte final do filme ( que se segue a partir desta sequência), não só Billy e Sullivan como infiltrados, mas vários personagens, numa rede de interesses que, propositalmente, é antes cômica que política.


O jogo de imposturas se afirma, também, através dos diálogos. São várias as falas que envolvem perguntas do tipo “Você quer ser como eu?”, “Você quer o meu lugar?”. A fala da sequencia que antecede a do elevador mostrada acima, diga-se, também é marcada pela repetição de uma fala nesse sentido, enunciada por Billy: “Você me conhece, você sabe quem eu sou!” diz ele ao ex-colega da classe de formandos da polícia...


Por um momento acredita-se que o ex-colega de fato conhece Billy como este afirma. Até que o filme vem e recusa a hipótese sem dó nem piedade...


Da mesma forma, quando o personagem de Sullivan parece ter se ajustado na própria identidade. O filme de Scorsese recusa a hipótese e...



Amarrando tudo, em termos visuais, o filme de Scorsese propõe uma gramática que salienta o uso de movimentos de câmera e montagem acelerada. Não são raros os momentos em que a câmera se movimenta num ritmo maior que o da própria mise-en-scene, ou se coloca em ângulos que elevam o que se mostra a uma dinâmica de poses, fotogenia e, novamente, imposturas. O mesmo com a montagem, que acelera passagens criando uma dimensão forçada, como se as pessoas em cena soubessem que são observadas.

“Os Infiltrados” é, além de um grande filme policial, uma obra que referencia a ficção no cinema como uma espécie de fantasia suja. palpável e ajustável que, substancial, não aceita modelos e nem precisa ser grandiosa. Desde que quem a conduza saiba manipulá-la com maestria. E Tio Scorsese sabe.



28/09/2015

KILLER OF SHEEP: O DILEMA DAS POSSIBILIDADES INDESEJADAS

Killer of Sheep, dirigido por Charles Burnett e lançado em 1962, é um atestado sobre o quão torturante pode ser a falta de perspectivas na vida de um grupo de pessoas. A idéia do limite de trajetórias surge como uma espécie de destino estratégico, organizado, em primeira instância, por um conjunto de relações espontâneas próprias dos guetos afro-americanos e, em maior escala, por aqueles que administravam (ainda administram) o racismo e as injustiças de um EUA incapaz de reconhecer as conseqüências de sua própria história.

O filme de Burnett funciona, antes de tudo, justamente por ocultar a escala maior da discussão, assumida aqui como premissa óbvia, preocupando-se, assim, em investigar, com toda calma, as conseqüências de um contexto anterior facilmente reconhecível. De certa forma, o recorte proposto por Burnett concretiza essa visão ao recortá-la e estendê-la, levando, propositalmente, quem assiste à exaustão. Neste sentido é curioso considerar que a ficção de Burnett se encontra na opção que ele faz de retirar o conforto de todos os momentos do filme. Não é o caso de uma experiência documental, mas de uma elevação das características daquele ambiente ao extremo.

A rotina daquelas pessoas é desgastante e o jogo de Burnett propõe a falta de perspectivas na vida de seus personagens como sendo análoga aos espaços que o filme oferece a quem assiste. Reitero: o filme não faz somente captar a falta de perspectivas porque não quer que o espectador se compadeça, simplesmente. Em outras palavras: o marasmo que domina o filme não é sua matéria-prima, menos ainda seu objeto, mas sim seu objetivo, sua construção fundamental. E em termos de construção, o elemento mais primoroso no filme de Burnett está na maneira como este alimenta sua gramática de cinema a partir da proposta inicial. Guiando seus significados, sobretudo pelo uso de uma montagem que interpõe sequências que se completam e se esvaziam, o filme entende que o espaço aberto de interpretação é mais importante que significados prontos sendo atirados na tela.

O primeiro momento que marca isso é a montagem seca que interpõe as crianças do bairro brincando às ovelhas penduradas no matadouro onde o protagonista trabalha.



A oposição entre as sequências percorre o filme todo e apresenta a realidade como uma substância que somente os sujeitos pertencentes àquele cenário conseguem identificar naturalmente. Burnett poderia, sim, explicitar os constituintes daquele recorte. Explicitá-los, no entanto, implicaria, provavelmente, na transformação do que se mostra em fenômenos, quase anomalias, próprias de uma provocação fácil. E, em última análise, se para os personagens daquele ambiente a falta de perspectivas, a violência, a aridez de vida e gestos não são anomalias, mas partes oriundas (ainda que desagradáveis) do cotidiano, o ponto de vista do filme ganha força.

Há, ainda, oposições simbólicas menos óbvias e mais espaçadas mas que, novamente, servem à construção da metamorfose lenta de determinada realidade. É o caso da seqüência em que as crianças atiram pedras num trem e a sequência, mais distante, em que as mesmas atiram pedras umas contra as outras. Burnett não aponta uma lógica de causa e efeito, de ambiente x sujeito. Pelo contrário, simplesmente situa o sentido dessa oposição como possibilidade dentre tantas outras


Aliás, ao contrário de muitos filmes, o ambiente em Killer Of Sheep não cria uma necessária relação de fuga. Burnett parece acreditar que recusar as possibilidades daquele ambiente não significa, necessariamente, rejeitá-lo em fuga, mas acreditar que é possível moldá-lo por dentro. O ambiente é antes uma premissa que um inimigo, de certa forma. A maneira como cada um age é um dado das possibilidades, um produto dos dilemas, nunca uma equação pronta. Em dado momento, aliás, Burnett salienta isso, numa das sequências mais bonitas do filme. O protagonista conversa com alguns conhecidos que tentam convencê-lo a participar de um roubo...


...é neste momento que surge, do escuro da casa, pela porta, a esposa do sujeito que, até então pouco participativa, toma a frente e recusa a proposta pelo marido.



Sequência breve, mas suficiente para projetar os vários caminhos dispostos no ambiente para o qual o filme aponta nossos olhos.

E, como dito acima, são vários os símbolos e metáforas. A queda do motor da caminhonete é outro ponto em que Burnett marca sua visão. Depois de todo o esforço para levar o motor até a caçamba da caminhonete, tudo o que resta é a inevitabilidade entregue: todos pressentem que o motor vai cair da caçamba, o tempo da impressão é o tempo que dura o plano. Ainda assim a tentativa se segue, quem sabe outra possibilidade cause surpresa, a obviedade do fracasso abre fresta pra alguma esperança. Até que o carro acelera, o motor cai, e o marasmo do esforço em vão volta como regra.


O marasmo no filme de Burnett é estratégico porque rejeita até mesmo as frestas que existiriam para contê-lo. Resiste, dentro nos mais variados momentos, a recusa pelo espaço da respiração. Logo, mesmo nos momentos de descanso do protagonista e daqueles que o cercam, suas folgas são marcadas por vazios: as conversas superficiais na cozinha, as conversas sem rumo na casa de amigos, os encontros nas escadas do conjunto habitacional.

É somente num momento, na cena mais famosa e sem dúvida mais linda do filme, que Burnett abre uma fresta para novos ares. Na dança entre o casal, ao som de "This Bitter Earth", na voz de Dinah Washington, a cumplicidade de marido e esposa, ainda que engessada pelo cotidiano, flutua em outra atmosfera. No entanto, perto desta cumplicidade se tornar um momento de entrega entre ambos, o marido se afasta da esposa, como se recusando qualquer miragem, talvez por não aceitar o alívio na condição de exceção, de raridade.


E, aqui, vale dizer, somos ela, levados de volta ao marasmo, ao vazio da impossibilidade, na construção de um plano que, desde o ambiente no qual se passa até a postura da esposa, resume, em seu simbolismo, o filme por inteiro. A luz vinda de fora vislumbra um outro cenário (um cenário melhor), mas é preciso, antes, ultrapassar a janela, romper em definitivo o obstáculo. No entanto, é desgastante fazer isso sozinha. Talvez por isso seja melhor sentar e olhar quais mudanças a luz clareia por dentro.


Encerrando, o filme de Burnett rejeita definitivamente a fuga como solução, porque os "de fora" nunca fizeram, nem farão nada por aquelas pessoas. O carro quebrado na viagem e a necessidade de voltar ao lugar de origem definem a defesa de Burnett de que a mudança, para aquelas pessoas, naquele contexto, só acontecerá de dentro para dentro, e só depois de dentro para fora. 


 Que filme. Burnett é grande.

25/09/2015

FAÇA A COISA CERTA E CIDADE DE DEUS: A REALIDADE SUBSTÂNCIA VS. A REALIDADE MODELO

“Faça a Coisa Certa”, de Spike Lee, é um filme reconhecido mais por sua estética do que por seu conteúdo. O mesmo acontece com “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. Talvez por isso, ao menos na minha cabeça, a comparação entre ambos seja constante. A diferença fundamental é que, enquanto o filme de Spike Lee tem no louvor à sua estética um sinal de afastamento de determinado olhar externo que sob ele repousa, o filme de Fernando Meirelles usa a estética como trunfo que esconde sua superficialidade delimitadora presente do início ao fim. Digamos que, enquanto olhar apenas para a superfície do filme de Spike Lee é uma escolha (consciente ou não), no caso do filme de Meirelles a estética é o eixo do filme em si.

É curioso perceber, no caso de “Faça a coisa certa”, como um filme que fala das tensões próprias dos guetos afro-latino-ítalo-americanos passou, com o tempo, a ser objeto de transfiguração pruma cambada de hipsters brancos à procura de seu próprio street-credit. Isso, obviamente, não é culpa de Lee, já que “Faça a Coisa Certa” é, sem dúvida, um dos melhores filmes a tratar do outro lado de um país tão idealizado como o EUA. O problema está no ajuste e no interesse do olhar de quem assiste. Para uns, o que fica do filme são os bordões, as caretas, as camisetas. Para outros, fica a potência de um filme que nos insere, quase literalmente, na rotina de um Brooklyn quente, colorido, em rota de colisão. “Cidade de Deus” é o inverso. O filme em si é uma visão afastada daquilo que retrata, expondo um mundo que se finge conhecer através de uma vitrine que, no fundo, protege a quem assiste.

O filme de Lee funciona, antes de tudo, por assumir a realidade, não como um modelo estático dentro do qual um elemento principal produz reatividades, mas como uma substância plenamente cambiável, em constante metamorfose. Em outras palavras, Lee não transforma a idéia de realidade num fetiche. Meirelles, do lado oposto, assume a violência como elemento de um modelo pronto, produzindo, assim, não só a violência urbana propriamente dita, mas também gestos violentos, diálogos violentos, sexo violento, enfim, a violência como gênese de uma realidade em versão fetiche, na qual violência e realidade não são manifestações orgânicas, mas um só fenômeno totalmente mecanizado. Lee desenvolve um amplo fluxo de informações, Meirelles condensa tudo num único recorte.

Seguindo, Mookie, o protagonista de Spike Lee, é nosso guia, logo, nos mostra a coisa por dentro. Não faz recortes, não piora nem melhora as coisas, apenas se depara e reage a estas, assim como as pessoas que o cercam. A fluidez dos caminhos de Mookie é a mesma das cargas de realidade no filme, que oferecem não só a naturalidade própria da história, mas outro ponto importante: sua imprevisibilidade. Personagens que parecem amigos em dado momento, se confrontam em outro. Personagens que parecem falidos num momento são exaltados em outro, e por aí vai. Já Buscapé, protagonista de Meirelles, não compartilha conosco sua rotina, mas tão somente seu desejo indissociável de escapar desta. A rota de Mookie se organiza sob as frestas inseridas em sua própria trajetória. A de Buscapé só existe em função da fuga, a todo custo, de uma condenação previamente determinada. Novamente: Lee defende a realidade enquanto substância, logo, mutável. Meirelles defende um modelo sólido e completo de realidade no qual nada se altera e a única hipótese é fugir para nunca mais voltar.

O único modelo presente no filme de Spike Lee, aliás, é o da ficção enquanto espaço de ampliação do que se observa. A defesa desse espaço existe quando o diretor resume um cenário social complexo em um microcosmo consagrado pelo Brooklyn, sabendo em quais chaves operar, o que ressaltar e o que priorizar. É assim que as tensões, os dramas, os amores, os enfrentamentos, os códigos e dilemas fazem parte da mesma atmosfera.  E isso se exemplifica em dois momentos, comparáveis também, e não à toa, com “Cidade de Deus”.

O primeiro diz respeito ao encontro entre Mookie e Tina, em comparação ao encontro entre Buscapé e Angélica:

O encontro entre Mookie e Tina se dá no mesmo espaço, no mesmo gueto, com dois personagens oriundos e fundados sob a mesma atmosfera. Já o encontro entre Buscapé e Angélica se dá em outro espaço, literalmente. Além disso, a personagem de Angélica habita outro cosmos, é a antítese completa do protagonista, como se a única chance do sujeito, mais uma vez, fosse “escapar” de seu próprio mundo e, de certa forma, de si mesmo. Por fim, a própria dinâmica da cena define lugares distintos. Mookie e Tina se encontram num quarto, espaço íntimo, que nos auxilia a compartilhar das sensações postas em cena. Buscapé e Angélica se encontram na praia, espaço amplo, mais distante, que nos coloca numa espécie de voyeurismo forçado.

A questão aqui é, acima de tudo, entender que essa diferença produz dois olhares: como dito acima, em “Faça a Coisa Certa”, vivemos junto com Mookie, em “Cidade de Deus” observamos Buscapé tentando viver. Estamos, portanto, neste último caso, sempre do lado “de cá”, torcendo pra que ele venha também. O efeito, em última instância, é que, no filme de Lee, o cenário ao redor é vivo e pulsante (fator exaltado pelas cores marcadas), e isso engrandece seu filme. Já no filme de Meirelles, o cenário é, bem, só um cenário. E embora o filme confunda vida com leituras frenéticas, o que cerca seu protagonista não ultrapassa a lógica do pano de fundo, elemento que retira potência do filme.

Há, ainda, outro momento de comparação: o estopim de violência em ambos os filmes. Em “Faça a Coisa Certa”, embora o estopim de violência seja entre as pessoas do bairro, o pandemônio se instaura depois que um morador do local é morto pela polícia e, a partir disso, todos resolvem atacar a Pizzaria. É como se, de certa forma, o ataque simbolizasse o ódio contra algo que é anterior, que não é próprio daquele ambiente, mas se manifesta, querendo ou não, a partir das premissas do contexto. A pizzaria em chamas poderia ser lida, assim, como a idealização de um não engessamento, de que a substância da realidade, sendo mutável, tão logo é volátil, prevendo a autodestruição como processo de transformação interna.


(por isso, aliás, o encontro entre Mookie e Salvatore que encerra a sequência é estratégico no filme) 



Não é este, no entanto, o caso de “Cidade de Deus”. Novamente, a cena coloca o protagonista na condição de inevitabilidade. O ambiente já está dado, pronto, imutável, resta a Buscapé escapar dali (ou não). Não há processo anterior, não há um núcleo de origem, a violência é quase uma entidade e o caminho é primordialmente o do eterno retorno (o roteiro circular só faz exaltar isso, inclusive). É importante dizer que a comparação, aqui, prevê as dinâmicas sociais sugeridas por cada filme como núcleos distintos, sabendo que compará-las seria impreciso. O ponto mais problemático é que o afastamento notório no filme de Meirelles é uma escolha que denota a presença de uma zona de conforto cinematográfica.  "Cidade de Deus" não ultrapassa superfícies, pelo contrário, simplesmente as reveste de outra coisa.


Assim, novamente: “Faça a coisa certa” nos obriga a lidar com as mudanças porque consegue nos fazer parte destas (isso nos agradando ou não), ao passo em que “Cidade de Deus” propõe quase um discurso condescendente, do tipo, “Vai garoto, sai daí, venha pro nosso lado, pro nosso paraíso”. Talvez por isso “Cidade de Deus” agrade mais do que “Faça a Coisa Certa”. E talvez por isso este último seja mais lembrado por sua superfície do que por aquilo que o define de fato. Porque “Faça a coisa certa” incomoda ao não oferecer distanciamentos, enquanto “Cidade de Deus” só existe em função da distância que promove. Em suma: “Faça a Coisa Certa” entende a rua porque fala a partir dela, curiosamente, de maneira muito mais sensível, detalhista e precisa. “Cidade de Deus” fala da rua, mas de longe. Da rua que só se enxerga do alto de alguma varanda, e que mesmo de frente pro morro, bem...continua sendo varanda.

TOUKI BOUKI: UM CONTO AFRICANO CONTRA OS ESTEREÓTIPOS

Touki Bouki é um conto africano em formato cinematográfico. O cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty articula, neste filme, como poucos, essa lógica. Mambéty talvez seja, junto com o também cineasta e conterrâneo Ousmane Sembene – considerado por muitos o pai do cinema Africano – um dos maiores e mais subestimados talentos do cinema fora do eixo América do Norte / Europa. Subestimado, sobretudo, em função do preconceito lançado desde sempre sobre África pelos olhos ocidentais. No máximo, o título que oferecem a Mambéty é de “Godard Africano”. Mas ele é muito mais que uma sombra.


Produzindo seu filme com uma quantia de, hoje, inacreditáveis 10 mil dólares, Mambéty é dono de uma apuração estética notável, além de pontuar suas narrativas com uma escrita de humor peculiar. É interessante perceber como o filme do diretor dribla os limites técnicos organizando seus pontos de vista em códigos que, acima de tudo, se manifestam na gramática de um cinema que não precisa de muito pra desarticular clichês. Parece natural dizer, assim, que a importância estética de Touki Bouki, per se, sustentaria o filme. A estética é, no entanto, só o começo.


Filmado num Senegal em processo de adaptação pós libertação da opressão colonial francesa - em independência oficializada somente em 1960 -, Djibril entrega em Touki Bouki a visão de uma áfrica pós-colonial que tenta se reestruturar ao passo em que rejeita, indiretamente, já na década de 70, os estereótipos e preconceitos produzidos e reproduzidos a respeito do continente (até hoje). O ponto fundamental é que a diferença produzida por um olhar interior, aqui, é paradigmática.


Em comparação a centenas de filmes que repousam sob o continente africano seus olhares ocidentalizados, geralmente interessados, em maior ou menor grau, por reclamar a própria indulgência perante a história, Touki Bouki é um tratado antiesteriótipos; desde o casal negro de protagonistas até as oposições simbólicas construídas. A primeira sequência que chama atenção, aliás, é tão sutil quanto genial.



O protagonista está num campo aberto cercado por cabeças de gado. Com uma corda em mãos, dá a impressão de que pretende laçar um dos bois. Ele gira o laço, lança-o, mas quando acerta o alvo, entendemos que na verdade se tratava da motocicleta do sujeito, que ele agora amarra em volta de uma árvore. Motocicleta esta com a qual ficamos no plano que encerra a sequência e que, não à toa, tem o crânio de um animal adornando sua dianteira. Oposição por símbolos entre um Senegal que se almeja e um mais antigo, que sempre existirá, de uma forma ou de outra? talvez. Há ainda, nesta mesma sequência, a irônica trilha em francês que percorre vários momentos do filme. É o jogo de Mambéty. Os símbolos estão dados, as aberturas de interpretação todas estrategicamente dispostas.


Outro momento (dentre tantos) de igual simbolismo merece destaque.



Após roubarem as roupas do dono de um hotel e usarem o carro com motorista particular para desfilarem numa parada festiva da cidade, o casal de protagonistas se depara com um grupo realizando uma espécie de dança ritualística. O grupo dança e canta enquanto o casal fuma e faz pose. Novamente, a oposição simbólica é dada. Não há, porém, recusa de uma imagem pela outra. Há, na verdade, a hipótese de escolha. As duas imagens são parte de uma mesma imagem mais ampla (do país africano em questão). Assim, se misturam, se afastam e se digerem, simultaneamente. A fluidez de possibilidades permeia o filme por ser a mesma fluidez que se dá agora na realidade do país e daquelas pessoas. E essa impressão se concretiza num terceiro momento.



Numa belíssima sequência em montagem paralela, o casal de protagonistas acaba se separando. A protagonista segue acreditando (ainda que a contragosto) na ideia de que a França oferece caminhos mais interessantes. E embora ela seja uma das poucas pessoas negras à bordo do cruzeiro (em dado momento um plano aberto salienta isso com primor), novamente, as escolhas estão postas. De mesmo modo, o protagonista sequer entra no navio, voltando, quase em desespero, ao encontro de sua motocicleta (ou de seu Senegal), anteriormente perdida, que embora seja forte e o tenha ajudado tanto, precisa de reparos e ajustes. Os símbolos se rejeitam e se completam ao mesmo tempo. Nada é definitivo em Touki Bouki.

A fábula de Mambéty é minimalista, concisa, despreocupada em atingir uma lógica universal que direcione todas as pessoas que o assistem para um mesmo lugar, sem entraves, sem dúvidas. A contrariedade dos estereótipos tem potência justamente por se assumir, nem como discurso previamente estabelecido nem como objetivo elementar. Os estereótipos se fragmentam pelo simples fato da história ser contada por um olhar intimamente ligado a ela. O diretor consegue organizar, nos detalhes, sentidos mais amplos que não se atiram aos olhos de quem vê, porque, no fim, Touki Bouki não é um filme sobre certezas, mas sobre possibilidades. Mambéty não está interessado em dar respostas, mas em fazer perguntas. E essa combinação, quando bem conduzida, produz grandes filmes.