30/09/2015

OS INFILTRADOS: UM JOGO DE IMPOSTURAS

“Os Infiltrados” é, a princípio, um grande filme policial conduzido por reviravoltas. Mas o que o torna tão especial na filmografia de filmes policiais e derivados produzidos nos últimos anos é que a duplicidade assumida por Scorsese, aqui, ultrapassa os caracteres narrativos propriamente ditos. As voltas do roteiro, os diálogos de efeito, os plotwists e circunstâncias que arrebatam e explodem a cabeça de quem assiste são tão somente o primeiro nível da diversão que o diretor exalta. Há um duelo de máscaras por trás de tudo. A entrega de Scorsese está na observação que faz das imposturas próprias de um cinema que é, antes de tudo, mais puro cinema. Na tela, “Os Infiltrados” se alimenta de um cinema para o qual o ato de encenar conduz, não somente a história contada abertamente em si, mas todos os seus sentidos interiores.

Em retrospecto, embora todos os filmes de Scorsese condensem, em certa medida, a pura ficção no ato de criar figuras e dinâmicas que só são possíveis a partir de uma fantasia suja que se ajusta a determinadas medidas de realidade, em outros filmes esse movimento é mais contido se em comparação com “Os Infiltrados”. "Goodfellas" e "Cassino", por exemplo, por terem a áurea da máfia como centro, têm suas imposturas limitadas em função de um grau maior de realidade que parecem carregar. Em “Os Infiltrados”, no entanto, Scorsese parece mais solto e disposto a abusar desse jogo.

O recorte de realidade que inicia o filme serve apenas para situar, brevemente, os personagens em suas próprias naturezas. E ainda que novamente as figuras em cena façam parte do violento universo das máfias (da máfia irlandesa, dessa vez) o cosmos presente ali é mais sucinto. O interesse de Scorsese está em manipular, mais do que tudo, suas imposturas.

Frank Costello (Nicholson) talvez seja o exemplo mais didático na gama de personagens já que, apesar de ser baseado num sujeito que realmente existiu, o Costello do filme é exageradamente excêntrico, propositalmente esquisito, estranhamente engraçado e incomodamente simpático.


Costello interpreta outra versão de si mesmo, o tempo todo. Não é difícil imaginá-lo como um garoto que assistia filmes como o “Scarface” de Hawks e que agora, velho e respeitado em seu meio, brinca, quase literalmente, de ser gangster (a cena da negociação com os chineses é primorosa nesse sentido). E se sua máscara serve de blindagem para ele em seu próprio habitat, elucida também a proposta de Scorsese. Se o filme é sobre pessoas que não são exatamente quem dizem ser, nada mais coerente do que fazer com que o espectador também não consiga reconhecer quem são aquelas pessoas ou, mais até, fazer com que o espectador suspeite que aquelas pessoas estão fantasiadas da maneira que mais as agrada e, querendo ou não (por mais que pese na consciência) se divirta com isso.

Seguindo, outro exemplo é a figura de Dignam (Wahlberg), outro que, definitivamente, interpreta um personagem dentro de um personagem. O cabelo num gel impecável, o jeito de falar, a postura, os gestos e, obviamente, o coldre sob os braços são seu atestado. Dignam é, não por circunstância, mas por escolha, o policial mala, um “proud mothafocka” estrategicamente ensaiado. Por isso, aliás, é o melhor personagem do filme: há algo de digno num sujeito que não sente vergonha, pelo contrário, se diverte, verdadeiramente, ao ser um babaca que xinga sem razão e sempre propõe uma troca de murros para resolver discussões. É dele, vale dizer, a melhor fala do filme: "I'm the guy who does his job, you must be the other guy". A fala em terceira pessoa não é à toa.

O mesmo vale, em menor medida, para Ellerby (Baldwin), sujeito meio canastrão, que faz questão de discursar a seus supervisionados com voz imposta, peito estufado e mãos na cintura. 



Por falar em escolha e circunstância, um dos trunfos de Scorsese é retirar, com precisão, a carga de caricatura dos dois personagens principais, que usam suas respectivas máscaras, não por escolha, mas por circunstância. O dilema oculto que conduz ambos os personagens parece estar justamente na genuinidade identificável de suas identidades. Porque, para Scorsese, aqui, o importante é a certeza de que sua máscara caiba bem em você. Caso contrário, é treta. E que se dane essa história de essência. Assim, ao contrário dos outros personagens, Collin Sullivan (Damon) e Billy (Di Caprio), se revelam, aos poucos, desprotegidos.

Se Costello e Dignam, por exemplo, constroem suas falsas identidades como forma de proteção, conscientemente, e se organizam a partir disso, a dupla de protagonistas teve suas identidades determinadas por pura imposição Ambos cresceram sem família, sem referências, como se destinados a serem infiltrados e nada mais. Sullivan é um jovem calmo e influenciável, Billy é um jovem com tendência aos problemas. A chantagem, antes de tudo, é que delineia suas identidades. Não há muitos espaços para que se moldem. Assim, no futuro, quando o jogo de identidades se estabelece, tanto Sullivan quanto Billy se perdem e desmoronam aos poucos. É interessante, aliás, a cena do elevador que precede a elipse mais desconcertante do filme

Sullivan carrega a feição do jovem frágil. Billy carrega a feição do jovem problemático. Ambos são mais voláteis que todos os outros personagens. Scorsese acusa ainda sua diversão ao trazer à tona, na parte final do filme ( que se segue a partir desta sequência), não só Billy e Sullivan como infiltrados, mas vários personagens, numa rede de interesses que, propositalmente, é antes cômica que política.


O jogo de imposturas se afirma, também, através dos diálogos. São várias as falas que envolvem perguntas do tipo “Você quer ser como eu?”, “Você quer o meu lugar?”. A fala da sequencia que antecede a do elevador mostrada acima, diga-se, também é marcada pela repetição de uma fala nesse sentido, enunciada por Billy: “Você me conhece, você sabe quem eu sou!” diz ele ao ex-colega da classe de formandos da polícia...


Por um momento acredita-se que o ex-colega de fato conhece Billy como este afirma. Até que o filme vem e recusa a hipótese sem dó nem piedade...


Da mesma forma, quando o personagem de Sullivan parece ter se ajustado na própria identidade. O filme de Scorsese recusa a hipótese e...



Amarrando tudo, em termos visuais, o filme de Scorsese propõe uma gramática que salienta o uso de movimentos de câmera e montagem acelerada. Não são raros os momentos em que a câmera se movimenta num ritmo maior que o da própria mise-en-scene, ou se coloca em ângulos que elevam o que se mostra a uma dinâmica de poses, fotogenia e, novamente, imposturas. O mesmo com a montagem, que acelera passagens criando uma dimensão forçada, como se as pessoas em cena soubessem que são observadas.

“Os Infiltrados” é, além de um grande filme policial, uma obra que referencia a ficção no cinema como uma espécie de fantasia suja. palpável e ajustável que, substancial, não aceita modelos e nem precisa ser grandiosa. Desde que quem a conduza saiba manipulá-la com maestria. E Tio Scorsese sabe.



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