25/11/2015

O LOBO DA ESTEPE, JONH CASSAVETES E AS ELIPSES INTERNAS

Antes de propor ideias sobre dois filmes de Jonh Cassavetes a serem discutidos aqui e a relação indireta que apresentam com O Lobo da Estepe, clássico livro de Herman Hesse, vale contextualizar o cenário no qual o cinema de Cassavetes se situava, entre o fim da década de cinqüenta e o fim da década de setenta. Dentro desta cronologia, avaliando a influência que a produção norte americana tida como mais clássica teria em outras propostas de cinema pelo mundo ao longo de décadas, um dos aspectos mais perceptíveis talvez esteja na convenção e conseguinte formalização de uma estrutura narrativa que prevê a existência do que, hoje, denomina-se “plot”; enredo ou premissa narrativa, em tradução livre. Deste conceito surgiria, por efeito, o plotwist; virada de enredo, inversão da premissa narrativa inicial.

Dentre os símbolos maiores deste modelo e dos formalismos nele inseridos (responsáveis por obras poderosas, heterogêneas e paradigmáticas, vale dizer) surgem nomes como Jonh Ford, Jonh Huston e Hitchcock. Fosse preciso dissecar a anatomia, ainda que sob um escopo generalista, do conceito de plot/plotwist, é plausível propor a ideia de que se organizam na condição de personagens reagindo a situações/eventos e produzindo novas situações/eventos a partir das reações primeiras. O movimento mais intenso, neste caso, é de fora pra dentro.

Há, no entanto, obras opositoras a este modelo, sendo algumas das mais interessantes as dirigidas por Cassavetes em sua rica filmografia, dentre as quais Shadows (1958) e Too Late Blues (1961) são bons exemplos. Cassavetes era, além de diretor, também ator. Logo, é possível perceber a confluência, em seus filmes destas duas escalas em interação constante. A princípio, Cassavetes não parece ter interesse em contar histórias formalizadas no conceito de plot, já que seus filmes não desvendam grandes jornadas morais, nem atestam trajetórias no corpo das narrativas que discorram sobre tensões exteriores e dominantes.

Para Cassavetes, é no interior dos personagens propriamente ditos e na localização destes nos espaços, que residem os fluxos e elipses mais interessantes. Não há uma lógica mimética associada aos personagens que crie, assim, um ciclo de absorção, diluição e transformação de suas personalidades e condutas de fora para dentro. O que Cassavetes propõe como premissa, como seu plot, é a investigação das várias facetas que uma mesma pessoa/personagem abriga em si por natureza, de dentro para fora. E aqui entra o primeiro diálogo de Cassavetes com O Lobo da Estepe, de Hesse.

No livro há uma passagem surrealista na qual o personagem principal, Harry, confronta-se com o multifacetado artista alemão Goethe, em sonho. Na discussão, Harry defende sua premissa de que ele próprio tem a personalidade composta por duas facetas auto sabotadoras, uma de homem, outra de lobo. Goethe, contrariando o sujeito, afirma, em suma, que a dualidade proposta por Harry é nada mais que uma defesa primária diante do drama hipotético de reconhecer que, na verdade, todo sujeito é composto, não por dois, não por três, mas por mil, cem mil facetas ao mesmo tempo, que se transformam, se metamorfoseiam, interagem e revezam constantemente. Voltando à Cassavetes, convém dizer que seu cinema se alinha a visão de Goethe (ou a visão que Hesse incute em Goethe). Cassavetes dedica todo seu interesse à investigação das inúmeras facetas que uma mesma pessoa/personagem guarda em si. Surge aqui, aliás, a primeira tônica das duas obras em foco neste texto: as faces (que, aliás, será o título em inglês de outro filme do diretor, pautado por dinâmicas semelhantes às especuladas aqui)

Chegando aos dois filmes em foco neste texto, "Shadows", primeiro deles, marca a estréia de Cassavetes como diretor e é também sua obra com discurso estético mais explícito e eloquente. Impõem-se, já nesta caso, a visão de um cinema menos formalista e grandioso, mais dedicado, ao invés disso, à disposição e ao jogo de volatilidades internas próprias dos personagens em determinados espaços e contextos. Nesta lógica se destaca, em "Shadows", sobretudo a forma como os rostos surgem dispostos entre espaços, campos de narrativa criados por enquadramentos e seus planos derivados, e luzes. 

Já nos créditos iniciais, "Shadows" articula os interesses que nele permearão do início ao fim. Além de ter pontuados, por toda a seqüência, rostos em distintos estados de ânimo, o filme dialoga mais uma vez com o livro de Hesse já que em "O Lobo da Estepe", o ato de entregar-se a dança, o aprender a dançar vários estilos e a música em si, mais especificamente o Jazz, por sua natureza espontânea, surgem na função de elementos que colocam quem se entrega a experiência numa espécie de eterno estado cambiável de sentimentos, personalidades e condutas. 


Seguindo, nos espaços mais íntimos de "Shadows", Cassavetes expande sua lógica, pontuando uma dinâmica peculiar, não pela simbologia dos rostos em si, mas também pela localização e disposição destes no espaço, nos enquadramentos e nos planos.Três exemplos, dentre tantos outros, são interessantes:

Ben (que pode ser lido como o lobo da estepe do filme, diga-se) vai visitar os amigos Hugh e Dennis numa espécie de cabaré. Quando chega, encontra Hugh e Dennis conversando. Ambos conversam enquanto o outro sujeito surge ao fundo do enquadramento, num plano de ocupação completa. Cassavetes promove, assim, de saída, dois campos de ação possíveis, duas trajetórias narrativas, digamos, num mesmo espaço.


Assim que a conversa chega a uma proposta que Dennis faz a Hugh, proposta que não parece verdadeiramente interessante para Hugh aos olhos de Ben, este se manifesta. Hugh então antecipa a discussão entre Ben e Dennis e pede que o último aguarde um minuto enquanto ele, Hugh, conversa com Ben. Neste momento, os campos se invertem, Ben passa a ocupar o primeiro campo (ou plano), enquanto Dennis é deslocado para o segundo. Novamente, duas trajetórias narrativas possíveis são postas e acontecem num mesmo espaço.


Em outro momento, Lélia, personagem que mora na mesma casa com os três sujeitos acima citados, recebe a visita de Tony, o rapaz com quem ela está saindo. Assim que Tony chega e descobre que a moça mora com dois homens negros, revela sem qualquer constrangimento seu racismo, até então desconhecido pela jovem. Ela, desconcertada, tenta entender a postura do sujeito. A tensão se desenha num plano simples  do casal, separado por um estratégico vazio ao meio, que será ocupado em seguida.


Logo depois, Hugh, percebendo a natureza da situação, surge por fora do quadro, ocupando a fresta e tomando a frente de Lélia na conversa, ordenando que Tony se retire imediatamente de sua casa e nunca mais volte. Assim, Hugh e Tony ocupam o primeiro campo, enquanto Lélia é deslocada para o espaço ao fundo. Novamente, Cassavetes articula mais de duas narrativas num mesmo espaço, definindo as viradas de seus personagens, tão logo de sua história, através, dessa organização sistemática.


Por fim, quando Lélia marca de sair com seu novo pretendente, um rapaz negro aparentemente tímido, ele a espera na sala da casa enquanto ela se arruma. No meio tempo, o rapaz começa a falar sobre música com Hugh e Dennis, até que se solta e revela ser um talentoso cantor amador. Eles começam uma pequena jam, ocupando o plano na seguinte organização


Quando Lélia diz estar pronta e pede a seu pretendente que se apresse para que ambos saiam, diante do pedido ignorado, Lélia se irrita por considerar que o objetivo do rapaz naquela noite deve ser o de impressionar a ela, e não aos colegas com quem ela mora. Neste momento a composição do plano se inverte, Hugh e Dennis surgem num primeiro plano e, entre eles, Lélia, até então carinhosa e meiga, surge enquadrando seu pretendente por sua conduta.


Seguindo, assim como em "Shadows", "Too Late Blues", lançado três anos depois, ainda que um pouco menos eloquente em seu discurso estético, também se dedica integralmente ao estudo da conduta de personagens através de suas feições e localizações em variados espaços. Espaços estes que se organizam, aqui, por movimentações de personagens em cena, (re)enquadramentos e novos planos. Contando a história de Ghost, cantor de uma banda de Jazz de pouco ou nenhum sucesso, este filme de Cassavetes também é o primeiro a tratar, com maior ênfase, do fracasso escondido nas entrelinhas do sonho americano. Novamente, três momentos são exemplares com relação ao cinema que o diretor defende.

Na primeira vez em que Ghost encontra com a pretensa cantora Jess e tem sua atenção atraída pela mulher, é curiosa a maneira como Cassavetes oculta o rosto da personagem visando justamente criar, num primeiro momento, ao redor da personagem, uma áurea de expectativa e importância, salientada pela maneira como as pessoas ao redor a encaram. Deste momento inicial surge um segundo, que aponta para o iminente desconforto sentido pela personagem diante da situação que se arma. Além disso, a sequencia apresenta a figura de Benny, o autointitulado agente de talentos que não crê, em absoluto, que Jess tenha, de fato, algum talento. Não à toa o sujeito surge encarando-a com reprovação a todo momento.


Em seguida, quando Jess não consegue acompanhar o ritmo do jazz veloz e imprevisível tocado pelos músicos negros, sentindo-se constrangida por isso, Cassavetes inverte a lógica do começo, trazendo Jess encurralada no fundo do campo, sendo observada por Ghost em primeiro plano. Aqui, a dualidade que permeará a relação do casal se estabelece: não fica explicito se o interesse de Ghost por Jess é fruto de uma paixão verdadeira, ou se fruto de um oportunismo que o sujeito assume ao imaginar as vantagens que pode tirar do talento de Jess, embora apenas ele pareça notar tal talento na moça.


Continuando, num momento mais a frente, quando Ghost e Jess já possuem uma maior intimidade, ela, que até então se mostrava uma mulher inocente guiada por ilusões e descrenças, de súbito assume uma personalidade extremamente perspicaz e sedutora. Na mais bela sequencia do filme, Cassavetes atesta sua genialidade ao conduzi-la de maneira simples, mas espetacular ao mesmo tempo. Inicialmente, sem qualquer aviso, Jess segura Ghost pelo braço e o traz para dentro de seu apartamento.


Em seguida, pede que o sujeito fique à vontade enquanto ela vai ao banheiro trocar de roupa. Com a câmera seguindo seus passos, Jess caminha lentamente para o escuro como se, precisamente nesse movimento, abandonasse gradativamente sua imagem anterior, indo ao encontro de uma outra versão de si escondida no ambiente. Ela segue caminhando para trás na direção do banheiro e então mergulha no escuro. De repente, então, o banheiro se ilumina, como se trazendo agora, à luz, tanto para Ghost quanto para quem assiste, Jess em uma nova personalidade. Uma outra Jess, de fato.


Por fim, na mais longa sequencia num só ambiente do filme, os integrantes da banda, mais Ghost, Jess e um grupo de estranhos se reúnem num bar. Novamente há, aqui, uma referência indireta ao livro de Hess. Em todo o tempo que antecipa um momento de estopim e de novas mudanças, a dança, a música e a frenética troca de posições entre os personagens parece evocar um processo constante de metamorfose, abrigada, a principio, no interior de quem aparece em cena, cada vez mais, no entanto, às margens do transbordamento. 

No inicio de uma cena, Jess e Ghost aparecem juntos, num aparente momento de cumplicidade.


O momento do casal é interrompido com a chegada surpresa do tal agente de talentos, Benny.


Depois de algum tempo, Ghost e Benny conversam "em particular" sobre os planos do primeiro de integrar Jess à banda, visando alavancar o grupo com o suposto talento que ele enxerga na moça. A medida em que Benny desencoraja a ideia, dizendo não enxergar em Jess nenhum sinal do talento que Ghost afirma reconhecer, ela se afasta gradativamente, ocupando mais e mais o fundo do campo. Esta lógica cria, como sempre, mais de um campo narrativo num mesmo espaço de imagem. O mais curioso é perceber que justamente nesse movimento de afastamento está a chave inversa que faz, simultaneamente, afastar o olhar dos dois homens em primeiro plano e aproximar este mesmo olhar de Jess e seu modo de reação. E isso se repetirá num segundo momento.


Durante a briga generalizada no bar ocorrida momentos depois, causada pelo grupo de estranhos, Ghost busca proteger somente a si mesmo, deixando Jess completamente à mercê da situação que se agrava. Depois de cessada a confusão, todos correm em direção a Ghost para checar seu estado. Enquanto isso, Jess chora sozinha, atônita com a postura absolutamente egocêntrica e patética do sujeito. Assim, ela surge isolada no fundo do campo e, mais uma vez, é justamente ao afastar completamente a personagem do primeiro plano que Cassavetes obriga quem assiste a se aproximar dela. É como se, ao passo em que todos ali se preocupam apenas com Ghost, o filme incumbisse ao espectador a função de se compadecer por Jess. E há, sem dúvida, toda uma narrativa contida nessa escolha minuciosa.


No mais, embora eu suspeite de qualquer saudosismo enunciado por quem não viveu pornochanchadas (tipo eu), não viu jogar a seleção de 82 (tipo eu), nem foi pra rua depor Collor (tipo eu), me obrigo a dizer que, em tempos de um cinema industrial cada vez mais grandiloquente e caduco (e de uma juventude cada vez mais dada aos nichos, por que não?), é reconfortante ter acesso a obras e cineastas que fizeram questão de defender um cinema de investigação do olhar, de articulação dos trejeitos, de minimalismos estratégicos. Cinema que busca a reinvenção sem medo de soar passadista ao se fazer e ser, essencialmente, sobre pessoas. Ou, mais do que isso, no caso de Cassavetes - e seu cinema mais Goethe que lobo da estepe -, ao se fazer e ser sobre as duas, três, cem, cem mil pessoas que podem existir dentro de uma pessoa só. 

22/11/2015

NINFOMANIACA + LOVE 3D: O MARKETING DA DESERÇÃO

Nos últimos três anos ao menos dois filmes impulsionaram seus cartazes à base de polêmicas publicitárias. “Ninfomaníaca” de Lars Von Trier e o recente “LOVE 3D” de Gaspar Noé trouxeram o sexo como núcleo de supostas tensões morais presentes em seus filmes. O problema, nestes casos, é que mais do que filmes interessados em discutir verdadeiramente a relação de sabotagem construída entre moralidade e sexo, os filmes e seus realizadores parecem, na verdade, mais dedicados a fazer ecoar falsas tensões morais previamente concebidas que, no fim, colocam moralistas e antimoralistas numa mesma interação de inocuidades: de um lado, filmes e cineastas lucram com suas falsas polêmicas, do outro, moralistas seguem pregando confortáveis sem contra-argumentos que os desconcertem de fato.

De saída, vale dissecar o modus operandi da moralidade, de modo geral, quando toma o sexo e seus derivados símbolos como suposta antítese de si mesma. Basicamente, a lógica da moralidade parece pressupor, de início, o esvaziamento de significados, realocando o foco de ação de modo a transformar os sujeitos que praticam tal ação (o sexo, no caso), gradativamente, em objetos não análogos a um “nós” em suspenso. Ao retirar do sexo sua condição de inerência aos sujeitos, tratando-o então como fenômeno próprio de objetos (consagrados em corpos e gestos sem face), a moralidade desumaniza o ato e, por consequencia, o arrasta para fora as inerências. A partir deste momento articula então, dentro desta outra conjuntura, significados mais convenientes.  De certa forma, a lógica da moralidade associada ao sexo parece visar, no fim das contas, a eliminação de quaisquer traços de empatia que possam aproximar para o outro lado – lado da dita imoralidade - as pessoas que ainda estão no meio do caminho, atordoadas, em dúvida, conservadas num status quo que garante, como de costume, somente ao homem branco heterossexual alguma autonomia plena.

É neste ponto que filmes como Ninfomaníaca e Love3D não advogam em defesa da liberdade própria do sexo, pelo contrário, fazendo apenas reafirmá-lo como ato vazio de significados, como processo conduzido por objetos, ainda que atribuindo a essa dinâmica uma estética supostamente mais libertária (embora mostrar nus frontais não seja libertinagem das mais criativas há anos). Sob o ponto de vista cinematográfico, aliás, é curioso como ambos os filmes acima citados colocam seus personagens numa áurea distante de tudo, numa espécie de atmosfera flutuante que inspira aqueles que se entregam ao sexo como se habitantes de um universo paralelo e clandestino. O problema, em síntese, é que se a moralidade realoca os sujeitos do sexo transportando-os para o campo dos objetos, qualquer contra-argumento que aceite esta última condição como premissa será ineficaz de saída. Assim, só a estética não basta(rá) para desarticular moralidades impostas ao sexo. Se lá acusam o sexo de pecado objetificado, objetificar o contra-argumento mostrando cá bundas, paus em balanço e bucetas sem nome, sem personalidades anteriores (mesmo que em 3d) não faz muito pra contrapor a premissa. Tende, na verdade, a reafirmá-la. Não à toa "Ninfomaníaca" tem como tônica a culpa e "Love 3D" o sexo enquanto exercício desesperado.

Indo além, neste ponto, como prova secundária de que a moralidade e a falsa deserção de alguns discursos caminham juntas, basta observar qual o tipo de símbolo que filmes como Ninfomaníaca e Love3D elegem como emblemas de seus discursos. Geralmente são corpos brancos, magros, milimetricamente fotogênicos, previamente bem aceitos pelos padrões ideais para protagonizar o sexo higiênico, clínico e publicitário tão bem quisto por esses filmes e seus realizadores. Em quase todas as cenas de sexo, em ambos os filmes citados, são objetos soltos (corpos, mãos, peitos), quase como se de bonecos infláveis, e não pessoas, que transam (e aqui uso “transar” por ser esta, há de se convir, a versão semântica do sexo mais limpo e insosso).

O caminho do cinema, neste sentido, parece ser justamente o de rearticular os significados atribuídos ao sexo pela moralidade, localizando novamente pessoas como sendo protagonistas do pecado mais delicioso de todos. Assim, mais do que supor subversões ao simplesmente mostrar o sexo sendo sexo, é preciso dar face ao sexo, porque só assim a moralidade ruirá desconstruída numa lógica simples, mas de plena potência: (quase, vale pontuar) todas as pessoas lá fora, das mais tímidas as mais extrovertidas, das mais estilosas as mais brejeiras, das mais largadas as mais requintadas, pensam em sexo, gostam de sexo, sonham com sexo, seja ativo, passivo, bdsm, em público, em silêncio, em grupo, em trio, em lajes ou banheiros públicos. Seja em casa ou fim de festa. As pessoas da foto três-por-quatro no RG, na carteira de trabalho ou na carteirinha de estudante são as mesmas que querem uma boa foda, orgásmica e relaxante, com força e com jeito, com dedo e com língua, com suspiro, suor, grito e riso, mesmo que só por uma noite, com alguém legal. E esses sujeitos, essas pessoas, não habitam somente em universos paralelos, cercados de neon, áureas sensuais, efeitos e máscaras. Não são só bundas, ainda que bundas também. Habitariam plenas, na verdade, lá fora e aqui dentro, nas ruas e nos quartos, nos escritórios e nos motéis, não fosse a constante e vigilante manutenção da moralidade. E a ineficácia de imoralidades marketeiras.

Aqui, uma diferença fundamental: questionar sentimentalizações rasas e antiquadas talvez, do sexo, não deve(ria) significar desumanizá-lo por completo. Em outras palavras: é preciso pontuar que o sexo não carece de idealizações românticas, conservadoras e opressoras em certo sentido, mas que retirar dele qualquer sinal de empatia e tesão oriundo de alteridades é apontar justamente pro outro lado, que afirma o sexo enquanto pecado que toma o corpo e o transforma em objeto sem identidade, sem consciência ou discernimento. É neste movimento de robotizar o sexo, confundindo tal robotização com um pretenso desnudamento de liberdades, que filmes como Ninfomaníaca e Love3D incorrem no risco de tratar este mesmo sexo como um fardo, uma organicidade a ser mecanicamente suprida apenas. Neste sentido, nada mais poderoso do que pontuar o desejo de determinado personagem, por exemplo, como algo produzido por um estado de plena consciência, de identidade, de natureza. O sexo não é, nesta chave, um elemento estanque a personalidade de cada pessoa, mas justamente fruto desta.

O mais curioso, além de tudo, é que o grande fetiche delatado pelas cenas na tela, tanto em Ninfomaníaca quanto em Love3D, nunca surge na tela em si, mas no que ela camufla sob seu status. Filmes como Ninfomaníaca e Love3D só existem em função da publicidade moral estrategicamente dimensionada, antes de tudo, pelos próprios filmes. Se existem polêmicas moralistas em torno dos filmes é em grande medida por serem moralistas os próprios lugares nos quais seus discursos se localizam em fase inicial.

Talvez seja preciso, assim, ir mais fora da curva, desconcertando a moralidade ao mostrar que a suposta imoralidade proposta pela primeira é contingência natural de todo indivíduo, de qualquer sujeito, de qualquer pessoa. Logo, o elemento anômalo da equação só pode ser a própria ideia de moralidade. Digamos que para ressignificar (termo em voga hoje em dia, não?) um símbolo, além de desnudá-lo de sua roupagem original (literalmente, no caso), também é preciso sustentá-lo em novos contextos.

Se os de lá dizem que o sexo enquanto entidade, enquanto símbolo é pecaminoso e imoral, e os de cá respondem filmando o sexo nesta mesma condição de entidade, de símbolo, neste contexto a moralidade vencerá por uma só razão: o contra-argumento não atrai quem está no meio do caminho, não produz empatia, não reflete nada além da vontade dos diretores de serem eleitos os desertores do moralismo mais atual. A diferença talvez esteja em continuar filmando o sexo, sim, com certeza, mas, mais do que isso, projetar no ato a feição e a identidade de quem protagoniza esse sexo, de quem fode, de quem fodemos.

O ponto é que desertores do presente só são eleitos desertores enquanto aquilo ao que supostamente desertam segue existindo. Logo, a efetividade contra qualquer moralidade não está em provocar a moralidade e os moralistas simplesmente, mas em ter a capacidade de apontar pra quem está no fogo cruzado e dizer “ó, tá vendo essa personagem aqui, ela é comum como você, e justamente por isso ela gosta de receber oral sentada na cara do parceiro, ou curte levar umas chicotadas, como você também pode gostar, quem sabe, por que não?” ou “ó, tá vendo esse personagem aqui, ele é comum como você, por isso mesmo gosta de sentar no pau do ficante, de morder a bunda do namorado, como você também pode gostar, quem sabe, por que não?”.

Para além do quão explicito será o sexo num filme, o importante mesmo é se este mesmo filme (e este mesmo sexo) é capaz (ou não) de retirar quem assiste da mera condição de observação levando essas pessoas a se identificarem com o que vêem, e, por conseqüência, a verem-se ali também.

No entanto, o que diretores como Lars Von Trier e Gaspar Noé fazem é propor tão somente seus filmes como espelhos de quem os enuncia (os próprios diretores, em primeira análise). Não é sobre o que fala o filme, mas sobre quem fala o filme. No modus operandi, afirmam os conceitos de moralidade postos, respondem na medida certa para que os moralistas reafirmem suas próprias posições e então lucram no colo da falsa polêmica. É a lógica básica do marketing da deserção.

Além do desperdício de discussões, de material humano e de talento, reitero: tais posturas servem apenas como manutenção do mesmo status quo moral que estes filmes e diretores querem fazer crer que criticam. Não há, verdadeiramente, qualquer discussão, qualquer desajuste que seja matéria-prima ou produto final dos filmes. Isso por uma razão muito simples, já citada acima: o marketing da deserção só existe se houver, no âmago do discurso, uma estrutura de “moral e bons costumes” que o financie previamente, que garanta algum eco contrário, ainda que ensaiado. No meio desse jogo restará, inevitavelmente, a decepção e a sensação de coito interrompido em boa parte do público que, sem mais opções, talvez recuse o que assistiu tomado por inércia e fadiga. 

Em última análise, se um filme realmente deseja questionar os valores conservadores associados historicamente ao sexo e ao simbolismo do corpo, o mínimo que se espera é que desperte algum tesão em quem assiste para que pelo menos, estatisticamente, de alguns milhões de espectadores, alguns milhares possam se libertar numa boa foda pós sessão. Mas nem isso estes filmes conseguem. Tendem a ser, na verdade, um atestado em favor do higienismo, um manual completo da paumolelência pós-moderna. Com muito 3D, neon e travellings. Mas sem graça. Sem gosto. Sem nada de novo. De novo.