Cat People, filme de 1949 dirigido por Jacques Tourneur, figura
entre os símbolos maiores do cinema noir que o cineasta francês, radicado no EUA, conceberia à época. Sendo uma obra noir por excelência estão ali, inseridas, obviamente, todas as marcas técnicas notáveis em um gênero tão
particular e consolidado.
Cat People, no entanto, não se faz notar apenas por sua estética própria de um noir clássico, mas também pela abordagem fantasiosa, análoga a filmes de terror, que lança sobre um tema específico: o medo. Abordagem essa que, se lançada nos dias hoje talvez sofresse com a limitação de olhar imposta por uma indústria cada vez mais adepta aos fetiches de uma falsa verossimilhança a qualquer coisa.
Cat People, no entanto, não se faz notar apenas por sua estética própria de um noir clássico, mas também pela abordagem fantasiosa, análoga a filmes de terror, que lança sobre um tema específico: o medo. Abordagem essa que, se lançada nos dias hoje talvez sofresse com a limitação de olhar imposta por uma indústria cada vez mais adepta aos fetiches de uma falsa verossimilhança a qualquer coisa.
O longa de Tourneur é, por essência, como dito acima, um filme sobre o medo.
Ou, mais até, sobre a simbiose própria deste. Aqui, cabe notar que “o medo” surge
assim, no singular, porque é esse medo enquanto força intrínseca à natureza de
cada um o que mais importa. Neste sentido, o filme se organiza a partir das premissas que desenvolve, através das quais o
medo, naturalmente, se manifesta e se sintetiza.
Cabe dizer, assim, que o filme de
Tourneur se compõe por visões de um cinema que propõe, abertamente, narrativa e
estética como princípio e extensão de uma só leitura, respectivamente. Nenhuma das duas gira em
falso. Não são, em momento algum, aleatórias ou arbitrárias uma a outra.
Em outras palavras, é como se Cat People se organizasse em duas
esferas: a interior, própria da narrativa, onde residem o tema que o filme
explora, assim como as trajetórias dos personagens e as quebras que surgem
disso, e a exterior, mais ampla, onde reside a gramática cinematográfica e, oriunda desta, a linguagem de cinema que circundará a primeira esfera. É nesse jogo que o filme articula seus significados.
Seguindo a lógica acima, aliás, cabe dividir o filme em
quatro chaves: a primeira diz respeito à narrativa que, como dito acima,
constrói a substância nuclear do filme. As outras três correspondem à
fotografia, som e montagem que, circundando a narrativa articulam, em conjunto, a maneira
como Cat People existirá num todo.
Em principio, o roteiro escrito por Dewiit
Bodeen parece centralizar-se na ideia do medo a partir da conduta volátil de sua protagonista, a imigrante Irena.
Em primeira análise, o ambiente no qual Irena está inserida abre espaços nos quais o medo se instaurará, gradativamente. Irena é não apenas uma imigrante sérvia que vive
na América selvagem do final dos anos 40, como também mora a poucos quarteirões
de um Zoológico habitado por, dentre outros animais, uma grande pantera que ecoa rugidos noturnos.
Além disso Irena é
supersticiosa, revelando crer, veementemente, com o passar do tempo, numa fábula
popular sérvia sobre mulheres que se transformam em panteras. Cat People localiza, assim, em seu
roteiro, a protagonista como se em simbiose inevitável com seus próprios medos. E é aqui
que entra Louis, psiquiatra que passa a atender Irena a pedido de conhecidos.
Louis e Irena estabelecem, fundamentalmente, um duelo oculto de discursos. Já no primeiro diálogo
entre ambos, uma fala de Irena cristaliza isso: “When you speak of the soul, you mean the mind”, diz ela enquanto deixa o zoológico acompanhada do médico. Em suma, Irena, por crenças atávicas, se vê forçada a acreditar na força do instinto sobre a razão, enquanto Louis,
por ajustes morais, prefere acreditar na força da razão sobre o instinto. O
resultado? para o filme está no fato de que Louis, mesmo silenciosamente, se vê seduzido por Irena. A mente é, enfim, na defesa feita pelo filme, atraída (ou traída) pelo
instinto. Discurso que se enunciará com ainda mais força na parte final do longa.
Em seguida, a segunda chave na qual o filme organiza suas operações se dá pela fotografia de Nicholas Murusaca. Pautada por contrastes consagrados, num jogo incessante entre luz e sombra que se salienta,
ainda, pela pouca movimentação de câmeras, Murusaca faz grifar, em detalhes, sobretudo, trajetos narrativos maiores sugeridos pelo roteiro, criando, desta forma, composições físicas, táteis, que oferecem, através de simbologias imagéticas indiretas, significados de borda para uma narrativa que, no roteiro, é
substância apenas. E são vários os momentos geniais:
Irena leva Oliver (aquele que será seu futuro marido) para seu apartamento, pela primeira vez, logo após se conhecerem. Antes de entrarem, a sombra de uma janela parece desenhar as grades de uma jaula na porta
Em outro momento, numa estratégica
seqüência sem cortes, Irena dá pistas de sua natureza. Em quatro enquadramentos que marcam quatro planos diferentes, a fotografia resume sua personagem.
O enquadramento inicial apresenta o objeto que é símbolo dos conflitos ocultos de Irena, num plano com função obvia, mas sutil e calculado.
O enquadramento inicial apresenta o objeto que é símbolo dos conflitos ocultos de Irena, num plano com função obvia, mas sutil e calculado.
O enquadramento então abre, formando um plano que coloca Oliver mais a frente, enquanto a pequena estátua surge à direta de um abajur que, central ao plano, criará uma oposição de símbolos. Irena, por sua vez, surge à esquerda da tela, ao fundo, contornada por feixes de luz que a iluminam. Neste momento a personagem fala dos porquês de morar perto de um zoológico, justificando que ali estaria perto de uma ideia agradável de natureza.
Seguindo, Irena se movimenta, inverte de
lado no enquadramento, sendo lançada na completa escuridão, habitando agora o mesmo espaço (ou mesmo lado) da estátua. Irena passa então a falar, neste momento, do lado ruim de morar ali, dizendo que, por vezes, os rugidos da pantera
parecem gritos de mulher, fato que a incomoda.
Logo em seguida, Irena nota quando Oliver acende um
fósforo em meio a escuridão do ambiente. Ela resolve sair da escuridão também, acendendo,
assim, a luz do abajur. Por fim, a mulher completa os significados presentes nesta sequencia soltando aquela que talvez seja a melhor fala do filme: “Oh, i hadn’t
realize how dark was getting”.
Ainda no primeiro encontro, em outro momento, Irena
posiciona-se sob um quadro com três gatos que parecem vigiá-la (ou protegê-la). É nesse momento que a protagonista conta a Oliver sobre a origem da estátua na sala e sobre a fábula assustadora que ouvira na infância.
Assim que Oliver se aproxima, no entanto, o enquadramento fecha, e o novo plano parece mostrar apenas dois dos gatos, que "olham", agora, na direção de Oliver.
Curiosamente, o gato que “some” do enquadramento é o preto, semelhante, não à toa, à pantera que habita o zoológico.
Por fim, as orelhas de gato (ou
pantera) que a sombra de uma cadeira parece imprimir ao redor da cabeça de Irena quando
esta conversa com Oliver, mais a frente no filme.
Genial.
Saindo da fotografia, a terceira chave do filme reside no trabalho de
som extremamente cuidadoso e moderno para a época. Os sons em
foley, preciosos aqui, fazem confundir, em momentos precisos, ruídos de carro com rugidos de animal. Essa confusão proposital se alia a montagem, quarta chave do filme que, sem também ser
estanque a fotografia e roteiro, constrói a atmosfera de medo e paranoia tão marcante e importante em Cat People. Neste sentido, duas sequências são memoráveis. Aquela em que Alice, colega de
trabalho (e futura amante) do marido de Irena sente estar sendo seguida por alguém (ou algo).
E aquela em que Alice, novamente, sente estar sendo seguida ao entrar sozinha na piscina de uma casa de banho.
É nessa lógica que, retomando a
ideia exposta anteriormente, a esfera narrativa e mais interna de Cat People, construída pelo roteiro, dialoga com sua esfera
estética e mais externa, construída por fotografia, som e montagem. A simbiose
entre as partes que compõem o filme é a mesma que se aplica a trajetória da
protagonista, fundando, em conjunto, a máxima do clássico de Tourneur: o instinto prevalece(rá) sobre a mente.
Logo, sentir e se entregar ao medo interiorizado significa tornar-se, aos poucos, o próprio medo, exteriorizado.
Por isso, aliás, é fundamental
que o filme abrace sua própria fantasia da maneira como faz no final. Justificar tudo usando insanidade da protagonista ou outra desculpa seria, no mínimo, um desperdício. Porque é bonito, embora trágico, o momento em que Irena e a
pantera completam a simbiose, invertendo, assim, definitivamente (e literalmente)
de papéis para, logo em seguida, morrerem ambas, quase ao mesmo tempo, como se criatura única. A
pantera, livre. E Irena também, de certa forma.