05/10/2015

CAT PEOPLE: A SIMBIOSE DO MEDO

Cat People, filme de 1949 dirigido por Jacques Tourneur,  figura entre os símbolos maiores do cinema noir que o cineasta francês, radicado no EUA, conceberia à época. Sendo uma obra noir por excelência estão ali, inseridas, obviamente, todas as marcas técnicas notáveis em um gênero tão particular e consolidado.

Cat People, no entanto, não se faz notar apenas por sua estética própria de um noir clássico, mas também pela abordagem fantasiosa, análoga a filmes de terror, que lança sobre um tema específico: o medo. Abordagem essa que, se lançada nos dias hoje talvez sofresse com a limitação de olhar imposta por uma indústria cada vez mais adepta aos fetiches de uma falsa verossimilhança a qualquer coisa.

O longa de Tourneur é, por essência, como dito acima, um filme sobre o medo. Ou, mais até, sobre a simbiose própria deste. Aqui, cabe notar que “o medo” surge assim, no singular, porque é esse medo enquanto força intrínseca à natureza de cada um o que mais importa. Neste sentido, o filme se organiza a partir das premissas que desenvolve, através das quais o medo, naturalmente, se manifesta e se sintetiza.

Cabe dizer, assim, que o filme de Tourneur se compõe por visões de um cinema que propõe, abertamente, narrativa e estética como princípio e extensão de uma só leitura, respectivamente. Nenhuma das duas gira em falso. Não são, em momento algum, aleatórias ou arbitrárias uma a outra.

Em outras palavras, é como se Cat People se organizasse em duas esferas: a interior, própria da narrativa, onde residem o tema que o filme explora, assim como as trajetórias dos personagens e as quebras que surgem disso, e a exterior, mais ampla, onde reside a gramática cinematográfica e, oriunda desta, a linguagem de cinema que circundará a primeira esfera. É nesse jogo que o filme articula seus significados.

Seguindo a lógica acima, aliás, cabe dividir o filme em quatro chaves: a primeira diz respeito à narrativa que, como dito acima, constrói a substância nuclear do filme. As outras três correspondem à fotografia, som e montagem que, circundando a narrativa articulam, em conjunto, a maneira como Cat People existirá num todo.

Em principio, o roteiro escrito por Dewiit Bodeen parece centralizar-se na ideia do medo a partir da conduta volátil de sua protagonista, a imigrante Irena. Em primeira análise, o ambiente no qual Irena está inserida abre espaços nos quais o medo se instaurará, gradativamente. Irena é não apenas uma imigrante sérvia que vive na América selvagem do final dos anos 40, como também mora a poucos quarteirões de um Zoológico habitado por, dentre outros animais, uma grande pantera que ecoa rugidos noturnos.

Além disso Irena é supersticiosa, revelando crer, veementemente, com o passar do tempo, numa fábula popular sérvia sobre mulheres que se transformam em panteras. Cat People localiza, assim, em seu roteiro, a protagonista como se em simbiose inevitável com seus próprios medos. E é aqui que entra Louis, psiquiatra que passa a atender Irena a pedido de conhecidos. 

Louis e Irena estabelecem, fundamentalmente, um duelo oculto de discursos. Já no primeiro diálogo entre ambos, uma fala de Irena cristaliza isso: “When you speak of the soul, you mean the mind”, diz ela enquanto deixa o zoológico acompanhada do médico. Em suma, Irena, por crenças atávicas, se vê forçada a acreditar na força do instinto sobre a razão, enquanto Louis, por ajustes morais, prefere acreditar na força da razão sobre o instinto. O resultado? para o filme está no fato de que Louis, mesmo silenciosamente, se vê seduzido por Irena. A mente é, enfim, na defesa feita pelo filme, atraída (ou traída) pelo instinto. Discurso que se enunciará com ainda mais força na parte final do longa.

Em seguida, a segunda chave na qual o filme organiza suas operações se dá pela fotografia de Nicholas Murusaca. Pautada por contrastes consagrados, num jogo incessante entre luz e sombra que se salienta, ainda, pela pouca movimentação de câmeras, Murusaca faz grifar, em detalhes, sobretudo, trajetos narrativos maiores sugeridos pelo roteiro, criando, desta forma, composições físicas, táteis, que oferecem, através de simbologias imagéticas indiretas, significados de borda para uma narrativa que, no roteiro, é substância apenas. E são vários os momentos geniais:

Irena leva Oliver (aquele que será seu futuro marido) para seu apartamento, pela primeira vez, logo após se conhecerem. Antes de entrarem, a sombra de uma janela parece desenhar as grades de uma jaula na porta


Em outro momento, numa estratégica seqüência sem cortes, Irena dá pistas de sua natureza. Em quatro enquadramentos que marcam quatro planos diferentes, a fotografia resume sua personagem.

O enquadramento inicial apresenta o objeto que é símbolo dos conflitos ocultos de Irena, num plano com função obvia, mas sutil e calculado.


O enquadramento então abre, formando um plano que coloca Oliver mais a frente, enquanto a pequena estátua surge à direta de um abajur que, central ao plano, criará uma oposição de símbolos. Irena, por sua vez, surge à esquerda da tela, ao fundo, contornada por feixes de luz que a iluminam. Neste momento a personagem fala dos porquês de morar perto de um zoológico, justificando que ali estaria perto de uma ideia agradável de natureza.


Seguindo, Irena se movimenta, inverte de lado no enquadramento, sendo lançada na completa escuridão, habitando agora o mesmo espaço (ou mesmo lado) da estátua. Irena passa então a falar, neste momento, do lado ruim de morar ali, dizendo que, por vezes, os rugidos da pantera parecem gritos de mulher, fato que a incomoda.


Logo em seguida, Irena nota quando Oliver acende um fósforo em meio a escuridão do ambiente. Ela resolve sair da escuridão também, acendendo, assim, a luz do abajur. Por fim, a mulher completa os significados presentes nesta sequencia soltando aquela que talvez seja a melhor fala do filme: “Oh, i hadn’t realize how dark was getting”.


Ainda no primeiro encontro, em outro momento, Irena posiciona-se sob um quadro com três gatos que parecem vigiá-la (ou protegê-la). É nesse momento que a protagonista conta a Oliver sobre a origem da estátua na sala e sobre a fábula assustadora que ouvira na infância.


Assim que Oliver se aproxima, no entanto, o enquadramento fecha, e o novo plano parece mostrar apenas dois dos gatos, que "olham", agora, na direção de Oliver. Curiosamente, o gato que “some” do enquadramento é o preto, semelhante, não à toa, à pantera que habita o zoológico.


Por fim, as orelhas de gato (ou pantera) que a sombra de uma cadeira parece imprimir ao redor da cabeça de Irena quando esta conversa com Oliver, mais a frente no filme.


Genial.

Saindo da fotografia, a terceira chave do filme reside no trabalho de som extremamente cuidadoso e moderno para a época. Os sons em foley, preciosos aqui, fazem confundir, em momentos precisos, ruídos de carro com rugidos de animal. Essa confusão proposital se alia a montagem, quarta chave do filme que, sem também ser estanque a fotografia e roteiro, constrói a atmosfera de medo e paranoia tão marcante e importante em Cat People. Neste sentido, duas sequências são memoráveis. Aquela em que Alice, colega de trabalho (e futura amante) do marido de Irena sente estar sendo seguida por alguém (ou algo).


E aquela em que Alice, novamente, sente estar sendo seguida ao entrar sozinha na piscina de uma casa de banho.


É nessa lógica que, retomando a ideia exposta anteriormente, a esfera narrativa e mais interna de Cat People, construída pelo roteiro, dialoga com sua esfera estética e mais externa, construída por fotografia, som e montagem. A simbiose entre as partes que compõem o filme é a mesma que se aplica a trajetória da protagonista, fundando, em conjunto, a máxima do clássico de Tourneur: o instinto prevalece(rá) sobre a mente. Logo, sentir e se entregar ao medo interiorizado significa tornar-se, aos poucos, o próprio medo, exteriorizado.

Por isso, aliás, é fundamental que o filme abrace sua própria fantasia da maneira como faz no final. Justificar tudo usando insanidade da protagonista ou outra desculpa seria, no mínimo, um desperdício. Porque é bonito, embora trágico, o momento em que Irena e a pantera completam a simbiose, invertendo, assim, definitivamente (e literalmente) de papéis para, logo em seguida, morrerem ambas, quase ao mesmo tempo, como se criatura única. A pantera, livre. E Irena também, de certa forma.











VINIL VERDE: UMA PEQUENA FÁBULA DE CINEMA

Mais reconhecido por sua estréia em longas com o filme “O Som ao Redor”, Kleber Mendonça Filho já havia dirigido, anteriormente, três pequenas pérolas: “Recife Frio”, “Eletrodoméstica” e “Vinil Verde”. Este último, baseado numa fábula popular russa intitulada "Luvas Verdes" é, sem dúvida, o mais peculiar de todos. Mendonça transporta um olhar de terror infantil ao cotidiano da infância moderna, na construção de uma fábula cinematográfica criativa e única.


Inicialmente acompanhamos a rotina de “Filha”, a protagonista. Auxiliada por "Mãe" nas tarefas básicas (como acordar no horário, abrir a janela, arrumar o quarto, etc.), Filha se encontra sob uma atmosfera que começa a mudar sutilmente a partir da primeira vez em que Mãe sai de casa, deixando Filha sozinha e com o sobreaviso: há uma caixa de discos coloridos sob a cama; “Filha pode ouvir todos os discos, menos o disco verde”, diz o narrador em off. A premissa aqui é, naturalmente, a curiosidade que o aviso dado por Mãe produzirá na filha e, por conseqüência, em quem assiste. Sabe-se já, desde aquele momento, que Menina, assim como nós, ouvirá o disco. Resta saber quais serão as conseqüências de fazer o proibido.





Inicialmente, a atmosfera marcante de “Vinil Verde” se deve às escolhas técnicas feitas que potencializam, propositalmente, as metáforas da história mais que a narrativa da fábula russa em si. Porque a fábula russa em questão, enquanto literatura, é de natureza simples que, caso transportada ao cinema como mera reprodução narrativa, perderia força. Assim, três elementos são chaves mestras no curta de Mendonça: o uso da memorável narração em off de Ivan Soares, a linguagem das imagens em fotomotion e o trabalho de som.

De saída, se em muitos filmes (longas ou curtas) a narração em off é usada como mero artifício preguiçoso para explicar roteiros mal desenvolvidos, no caso de "Vinil Verde" a narração onisciente de Ivan Soares, que substitui os diálogos, é fundamental ao contribuir na realocação do filme, muito a partir de seu tom de voz, numa espécie de campo da memória que lança uma redoma de mistério sobre o curta e confere a este, em última instância, um ar fantasmagórico. 

Quando Mãe sai de casa e Filha fica sozinha, a narração onisciente também faz retirar quem assiste de uma posição de observação apenas. Se o posto de onisciência da história já está ocupado, a única posição que o filme nos oferece é ao lado de Filha. E se a menina parece não temer (ao menos não explicitamente) o desconhecido, não é por erro de cálculo, mas por estratégia, já que é essa impressão, precisamente, que transporta os temores que seriam só dela também para quem assiste. 

Seguindo, a opção por fazer o filme todo em sequências de fotomotion é outro acerto. Por natureza própria desta técnica, as interrupções entre planos e enquadramentos organizadas na montagem criam uma estética que, ao paralisar, de certa forma, quem assiste, dificulta a antecipação do que se seguirá. Além disso, movimentos de câmera, assim como movimentos excessivos das pessoas em cena talvez retirassem a tensão própria do filme ou, mais até, fizessem pesar a mão em pontos que necessitam sutileza (algumas cenas, sobretudo). De mesmo modo, novamente, essa opção estética cria um tempo em delay que eleva o filme à sua própria dimensão particular e fabulesca.

O trabalho de som, por sua vez, é importante ao amarrar as duas pontas anteriores. Se a narração em off nos localiza na história e a montagem em fotomotion abre pequenos espaços de tempo desconhecido fundamentais à atmosfera do filme, é o som em foley que trata de articular o diálogo entre ambos. Se um frame sugere uma porta abrindo e a narração dá o tom do momento, o restante da cena fica por conta do som. E mesmo que esse “restante” signifique, na prática, segundos apenas, o trabalho de som consegue, mesmo assim, guiar quem assiste a completar as imagens dentro da própria cabeça através da imagem outra, oculta: imagem do som, digamos.

São nesses microespaços que “Vinil Verde” guia suas diretrizes e metáforas, já que parte do filme se constrói em tela e a outra parte, obrigatoriamente, se constrói na cabeça de quem vê. No mais, a música que toca no disco verde é tão estranha quanto assustadora  Silverio Pessoa - Luvas Verdes

A fábula de “Vinil Verde” parece ser ao fim, uma fábula sobre amadurecimento e responsabilidade. A premissa moderna para a qual o filme transporta sua fábula original sustenta isso: o apartamento vazio e isolado do mundo, a Mãe solteira que precisa sustentar a casa, a Filha única que se cria sozinha. É nesse jogo de realidades recortadas, bem apropriado, diga-se, ao tempo de um curta, que entram a metáfora e a fantasia narrativas, já que a proibição de Mãe com relação ao disco verde é análoga ao “não mexa nas facas, não mexa no fogão, não se pendure na janela”, coisas que toda criança já escutou na vida.

A partir do momento em que Filha desafia a ordem protetora de Mãe, assume o risco e se entrega a curiosidade, amadurece. Mas amadurecer, naturalmente, traz conseqüências. Estas, no caso, suportadas pela figura de Mãe, que perde uma parte do corpo sempre que Filha escuta o disco verde. E aqui vão as oposições: se no começo Mãe abria a janela do quarto, agora filha a abre sozinha; se antes Mãe servia o café para Filha, agora filha serve o café para Mãe; se antes filha brincava com as bonecas, agora brinca com estojos de maquiagem. Aos poucos, nota-se sem erros: Filha torna-se Mãe. 





Assim, na morte lúdica que encerra a relação, Mãe deixa, definitivamente, de ser símbolo de proteção. E se essas passagens são mostradas sem tanto peso, de forma etérea e banal, vale lembrar: Filha é uma criança e é sob seu ponto de vista que o filme se organiza.



Em sua parte final, "Vinil Verde" se entrega plenamente ao flerte com o cinema de terror quando simplesmente acompanha filha em seu novo comportamento consideravelmente estranho, sem tentar explicá-lo, no entanto. Num ato inconsciente, influenciada pelo conteúdo do disco talvez, não se sabe ao certo, Filha vai a um supermercado e compra as famigeradas Luvas Verdes (que, símbolo de seus medos, ao que parece, a atacarão depois). Aqui, um adendo: sendo as Luvas Verdes luvas de lavar louça, seria possível divagar em interpretações maiores, mas seriam estas tão somente...divagações. 

Porque, na verdade, não é preciso saber a razão exata de tudo. Se a ilógica curiosidade que se equilibra entre inocência e medo inicia o filme, também o encerra. "Mais tarde ela própria se apaixonou, teve filhos, para eles deu todo seu amor e todos os seus medos e mais profundas aflições", diz a narração final. Nada mais. O espaço é dado, a realidade cria o espaço e a fantasia ocupa. Como cada um se manifestará nessa equação é outra (boa) história.



“Vinil Verde” poderia, naturalmente, ser resumido como obra inteligente ao explorar o cinema enquanto linguagem própria, que não adapta apenas, mas estende o material no qual se baseia, brincando com suas possibilidades. No entanto, além, o curta dirigido por Mendonça desafia ao abraçar suas próprias estranhezas. Interessante justamente por ser fora da casinha,

01/10/2015

ENTRETANTO E REDEMPTION: O CINEMA METAMORFOSE DE MIGUEL GOMES

Miguel Gomes, cineasta português que despontou há cerca de três anos com seu longa “Tabu” afirmou certa vez, quando perguntado sobre o porquê de seus filmes geralmente se dividirem em capítulos, que o cinema de um caminho só não lhe interessa(va). Neste sentido, reconhecer Miguel Gomes como um dos cineastas mais interessantes atualmente é perceber que a característica maior de seus filmes está numa fluidez particular, ou, ainda, numa metamorfose prática entre elementos de fantasia e realidade. Tal metamorfose é notável também em dois de seus curtas: Redemption e Entretanto.

Em "Entretanto", curta de 1999, o processo de construção das memórias é matéria-prima aliada a um coming of age poético e peculiar. Neste filme, o diretor enfoca o movimento de nascimento e registro das memórias de Rita, sua protagonista. Em "Entretanto", a memória que se constrói é solidificada na medida em que a jovem amadurece.

Guiando-se por episódios vividos pela protagonista, o curta localiza sua fantasia nos ambientes que a cercam ao passo em que localiza a realidade quase como substância própria do que a jovem sente ao longo do filme. Subvertendo convenções, novamente, é como se Gomes propusesse, aqui, que os espaços físicos, os contatos, as fruições são a fantasia, e a realidade é tão somente o sentimento e a maneira como a jovem interage e se comporta diante do que vive e sente. Por isso, aliás, da existência de passagens aparentemente soltas com trilhas casuais e as várias conexões entre imagens.

No início do filme, a personagem está sentada numa arquibancada enquanto um grupo de amigos joga rugby. Depois de algum tempo outra menina senta-se também. Parece haver certo estudo, certa curiosidade entre ambas, delatando talvez uma atração, quem sabe. Gomes não explicita. Mas, se entendemos que existe sim uma atração e que ambas estão conversando a sós pela primeira vez, por exemplo, o diretor brinca com isso e a montagem abandona a sutileza do momento para voltar à imagem pateticamente rude dos amigos jogando Rugby. Não só o filme brinca com a particularidade das memórias como também salienta seus pontos de vista sobre o amadurecimento: as jovens conversam, fumam e cruzam as pernas como se mulheres num filme dos anos 60, enquanto os rapazes se atiram todos juntos na busca da bola oval.


Em outro momento, numa festa, há uma breve passagem na qual o filme aponta, em sutileza genial, como a memória pode ser relativa (e poderosa). A jovem protagonista está parada diante do que parece ser uma pintura abstrata. O plano, no entanto, restringe os espaços. Assim que um conhecido da moça (de quem ela parece gostar), diz seu nome ("Rita!"), ela sorri. Mas ele passa e diz apenas “tens uma coisa entre os dentes”. A feição da moça muda e o plano abre, ganha dimensão, supondo, talvez, a construção de uma memória constrangida e solitária a partir de uma passagem completa de banalidade. Logo em seguida a jovem procura um espelho.



Seguindo, na mesma festa, após uma sequência que mostra cenas distorcidas de um filme pornô na televisão, mostra-se a jovem protagonista com mais dois amigos, todos flutuando numa boia em cores infantis enquanto se beijam pausada e democraticamente. O bonito plano que encerra a sequencia marca a árvore de plástico que faz parte da boia como se numa paisagem distorcida, de memória. A sequencia termina.


No entanto, mais a frente, seu simbolismo retorna quando os três jovens surgem, agora numa praia, fazendo o mesmo que faziam na sequencia anterior. Intercalando as duas paisagens o filme localiza, como dito acima, realidade e fantasia em posições inversas. A fantasia se aplica no ambiente que, não à toa, se transforma de um plano à outro, mutável como qualquer fantasia a partir da visão de quem a produz. Se a jovem amadurece através de experiências marcantes, o ambiente ao seu redor se altera e se solidifica, tão logo sua memória. Assim, o fluxo entre realidade e fantasia está dado.


Em sua parte final, numa longa sequencia sem cortes, "Entretanto" define o amadurecimento de sua protagonista ao retirar foco da dupla de amigos e entregar-se completamente à jovem.

No primeiro momento da sequencia, aberto num lindo plano, ela surge dominando o enquadramento enquanto os dois surgem gradativamente minúsculos no campo que se aprofunda. A medida que os dois se afastam, a personagem parece crescer na tela.


No segundo momento, aos poucos, o rosto da jovem transforma-se numa quase paisagem. Novamente, os sinais de amadurecimento realocam o ambiente e os símbolos de memória se alteram. Se o que cerca a jovem é a fantasia das memórias que ela manipula sem nem perceber, e se sua mudança e amadurecimento implicam em alterações no entorno, logo, aquilo que simboliza suas memórias também muda. Retomando, a paisagem da primeira memória é infantil. A paisagem da segunda memória é mais sólida e etérea. E ao sutilmente deixar de lado a relação com os dois rapazes, a paisagem da memória passa a ser então o próprio rosto da jovem que surge, assim, face e paisagem, realidade e fantasia, ao mesmo tempo.



Esse movimento ganha força quando se nota que a sequencia só se interrompe com a volta dos dois jovens que, propositalmente, retiram a protagonista de sua solidão pontual.



“Entretanto” é uma pérola porque usa suas abstrações como matéria-prima, buscando estabelecer conexões, não através de lógicas explicitas postas em relevo, mas de uma sensorialidade própria, afinal, das memórias.

Seguindo, se "Entretanto" foca o movimento de nascimento e registro das memórias, "Redemption", lançado 14 anos depois, toma registros de memórias já nascidas como ponto de partida para analisar o caminho de seus definhamentos. A lógica de subjetividade da memória que marca os 26min de curta é própria, mais uma vez, da dupla articulação entre fantasia e realidade que Gomes defende, organiza e subverte em seus filmes. No caso de "Redemption" mais até do que “Entretanto”.

De saída é interessante perceber como o início em tons documentais, com imagens em estética de arquivo pontuadas por vozes off promove, não um movimento de aproximação em direção ao que se mostra, mas sim um movimento de afastamento determinante e proposital. Contrariando as premissas de boa parte do cinema “de realidade” produzido nos últimos anos, as imagens, aqui, localizam quem assiste numa espécie de voyeurismo, como se gavetas de memórias se abrissem aos nossos olhos e a única possibilidade fosse se entregar a curiosidade. Assim como faz, aliás, de certa forma, o pequeno menino que aparece no começo do filme. Esse afastamento inicial é estratégico para o que virá depois.


A articulação de sentidos organizada em "Redemption" passa, fundamentalmente, pela gramática de cinema utilizada, que origina uma linguagem construída não só pela natureza estética das imagens em si, mas por sua aparente desorganização. A impressão de que o processo de agrupamento das imagens foi aleatório e estanque é premeditada porque a desorganização inicial estratégica de "Redemption" serve, sobretudo, para retirar de vista qualquer eixo de identificação entre as imagens e quem assiste.

Não há, em outras palavras, um espelho que nos coloque imediatamente do outro lado. Há, sim, imagens de pessoas correndo num quintal, cenas de um casamento, momentos de confraternização entre desconhecidos. Por isso a relação primária que o filme propõe é de abstração. E não à toa a voz off surge entidade, em falas tão flutuantes quanto as imagens. O respeito pela memória registrada de sabe-se lá quem é a única aproximação que o filme permite inicialmente.


A emulação da realidade inserida nas memórias visuais dá espaço, aos poucos, à medidas de fantasia. Esta metamorfose vai ganhando força na medida em que as imagens mudam e com elas mudam as vozes que falam e, principalmente, seus sotaques. Alemão, Português, Italiano e Francês são os idiomas que, aqui, se conectam. Esta conexão, no entanto, não é aberta. O que o filme de Gomes define, na verdade, são espaços que aceitam a hipótese de uma espécie de conexão flutuante entre vozes/vozes e vozes/ imagens.

Novamente, a abstração é o elemento chave. A falta de especificidade de cada imagem e sua interposição solta é o que permite imaginá-las como parte de um registro de memória compartilhado pelas quatro vozes. Curioso ainda é considerar como cada um dos sotaques marcantes posiciona, naturalmente, cada voz numa distância espacial própria, ao passo em que as imagens realocam tudo num mesmo cosmo, numa mesma nuvem de memória. É como se aquilo que, na tese, criaria distâncias, em "Redemption" definisse justamente a aproximação de tudo. 


O definhamento dessa nuvem de memórias avança e, como símbolo, as imagens começam a sofrer como se processos do tempo. Surgem manchas, fantasmas, descolorações, dessaturações e sobreposições. E o mais bonito é a sensação entregue pelo filme de que não são imagens específicas que se deterioram, mas a substância da memória em si. As imagens, agora, não são imagens apenas, mas fluidos de uma memória que é, no fim de tudo, substância palpável.


Por fim, a fantasia se sobrepõe definitivamente à realidade na brincadeira genial de Gomes, que poderia ser entendida como o plotwist de seu curta. Ao fim das imagens, as vozes ouvidas em Alemão, Francês, Português e Italiano revelam-se como “sendo” de Ângela Merkel (primeira ministra da Alemanha), Nicolas Sarkozy (ex-presidente da França), Pedro Passos Coelho (primeiro ministro de Portugal) e Silvio Berlusconi (ex-primeiro ministro da Itália), respectivamente.



O filme de Gomes constrói, fantasiosamente, a memória das quatro figuras sem situar a quem assiste e, num movimento inesperado, retira seu filme de um registro de memória em abstração para lançá-lo como desnudamento de figuras públicas distantes de nós. É precisamente nessa virada, nesse gesto de transformar a memória anteriormente substancial em atestado da intimidade de pessoas distantes de nós (em vários sentidos) que o filme nos aproxima e nos puxa para dentro de si em definitivo. O fluxo de fantasia proposto por Gomes ao longo do filme torna tudo mais real. Assim como o fluxo de realidade meticuloso presente do começo ao meio do filme dá potência a fantasia que se finaliza. Curiosamente.

Miguel Gomes não se interessa por caminhos únicos, de fato. Ainda bem. "Entretanto" e "Redemption" são cinema em metamorfose pura. Cinema raro. Ouro.