28/09/2015

KILLER OF SHEEP: O DILEMA DAS POSSIBILIDADES INDESEJADAS

Killer of Sheep, dirigido por Charles Burnett e lançado em 1962, é um atestado sobre o quão torturante pode ser a falta de perspectivas na vida de um grupo de pessoas. A idéia do limite de trajetórias surge como uma espécie de destino estratégico, organizado, em primeira instância, por um conjunto de relações espontâneas próprias dos guetos afro-americanos e, em maior escala, por aqueles que administravam (ainda administram) o racismo e as injustiças de um EUA incapaz de reconhecer as conseqüências de sua própria história.

O filme de Burnett funciona, antes de tudo, justamente por ocultar a escala maior da discussão, assumida aqui como premissa óbvia, preocupando-se, assim, em investigar, com toda calma, as conseqüências de um contexto anterior facilmente reconhecível. De certa forma, o recorte proposto por Burnett concretiza essa visão ao recortá-la e estendê-la, levando, propositalmente, quem assiste à exaustão. Neste sentido é curioso considerar que a ficção de Burnett se encontra na opção que ele faz de retirar o conforto de todos os momentos do filme. Não é o caso de uma experiência documental, mas de uma elevação das características daquele ambiente ao extremo.

A rotina daquelas pessoas é desgastante e o jogo de Burnett propõe a falta de perspectivas na vida de seus personagens como sendo análoga aos espaços que o filme oferece a quem assiste. Reitero: o filme não faz somente captar a falta de perspectivas porque não quer que o espectador se compadeça, simplesmente. Em outras palavras: o marasmo que domina o filme não é sua matéria-prima, menos ainda seu objeto, mas sim seu objetivo, sua construção fundamental. E em termos de construção, o elemento mais primoroso no filme de Burnett está na maneira como este alimenta sua gramática de cinema a partir da proposta inicial. Guiando seus significados, sobretudo pelo uso de uma montagem que interpõe sequências que se completam e se esvaziam, o filme entende que o espaço aberto de interpretação é mais importante que significados prontos sendo atirados na tela.

O primeiro momento que marca isso é a montagem seca que interpõe as crianças do bairro brincando às ovelhas penduradas no matadouro onde o protagonista trabalha.



A oposição entre as sequências percorre o filme todo e apresenta a realidade como uma substância que somente os sujeitos pertencentes àquele cenário conseguem identificar naturalmente. Burnett poderia, sim, explicitar os constituintes daquele recorte. Explicitá-los, no entanto, implicaria, provavelmente, na transformação do que se mostra em fenômenos, quase anomalias, próprias de uma provocação fácil. E, em última análise, se para os personagens daquele ambiente a falta de perspectivas, a violência, a aridez de vida e gestos não são anomalias, mas partes oriundas (ainda que desagradáveis) do cotidiano, o ponto de vista do filme ganha força.

Há, ainda, oposições simbólicas menos óbvias e mais espaçadas mas que, novamente, servem à construção da metamorfose lenta de determinada realidade. É o caso da seqüência em que as crianças atiram pedras num trem e a sequência, mais distante, em que as mesmas atiram pedras umas contra as outras. Burnett não aponta uma lógica de causa e efeito, de ambiente x sujeito. Pelo contrário, simplesmente situa o sentido dessa oposição como possibilidade dentre tantas outras


Aliás, ao contrário de muitos filmes, o ambiente em Killer Of Sheep não cria uma necessária relação de fuga. Burnett parece acreditar que recusar as possibilidades daquele ambiente não significa, necessariamente, rejeitá-lo em fuga, mas acreditar que é possível moldá-lo por dentro. O ambiente é antes uma premissa que um inimigo, de certa forma. A maneira como cada um age é um dado das possibilidades, um produto dos dilemas, nunca uma equação pronta. Em dado momento, aliás, Burnett salienta isso, numa das sequências mais bonitas do filme. O protagonista conversa com alguns conhecidos que tentam convencê-lo a participar de um roubo...


...é neste momento que surge, do escuro da casa, pela porta, a esposa do sujeito que, até então pouco participativa, toma a frente e recusa a proposta pelo marido.



Sequência breve, mas suficiente para projetar os vários caminhos dispostos no ambiente para o qual o filme aponta nossos olhos.

E, como dito acima, são vários os símbolos e metáforas. A queda do motor da caminhonete é outro ponto em que Burnett marca sua visão. Depois de todo o esforço para levar o motor até a caçamba da caminhonete, tudo o que resta é a inevitabilidade entregue: todos pressentem que o motor vai cair da caçamba, o tempo da impressão é o tempo que dura o plano. Ainda assim a tentativa se segue, quem sabe outra possibilidade cause surpresa, a obviedade do fracasso abre fresta pra alguma esperança. Até que o carro acelera, o motor cai, e o marasmo do esforço em vão volta como regra.


O marasmo no filme de Burnett é estratégico porque rejeita até mesmo as frestas que existiriam para contê-lo. Resiste, dentro nos mais variados momentos, a recusa pelo espaço da respiração. Logo, mesmo nos momentos de descanso do protagonista e daqueles que o cercam, suas folgas são marcadas por vazios: as conversas superficiais na cozinha, as conversas sem rumo na casa de amigos, os encontros nas escadas do conjunto habitacional.

É somente num momento, na cena mais famosa e sem dúvida mais linda do filme, que Burnett abre uma fresta para novos ares. Na dança entre o casal, ao som de "This Bitter Earth", na voz de Dinah Washington, a cumplicidade de marido e esposa, ainda que engessada pelo cotidiano, flutua em outra atmosfera. No entanto, perto desta cumplicidade se tornar um momento de entrega entre ambos, o marido se afasta da esposa, como se recusando qualquer miragem, talvez por não aceitar o alívio na condição de exceção, de raridade.


E, aqui, vale dizer, somos ela, levados de volta ao marasmo, ao vazio da impossibilidade, na construção de um plano que, desde o ambiente no qual se passa até a postura da esposa, resume, em seu simbolismo, o filme por inteiro. A luz vinda de fora vislumbra um outro cenário (um cenário melhor), mas é preciso, antes, ultrapassar a janela, romper em definitivo o obstáculo. No entanto, é desgastante fazer isso sozinha. Talvez por isso seja melhor sentar e olhar quais mudanças a luz clareia por dentro.


Encerrando, o filme de Burnett rejeita definitivamente a fuga como solução, porque os "de fora" nunca fizeram, nem farão nada por aquelas pessoas. O carro quebrado na viagem e a necessidade de voltar ao lugar de origem definem a defesa de Burnett de que a mudança, para aquelas pessoas, naquele contexto, só acontecerá de dentro para dentro, e só depois de dentro para fora. 


 Que filme. Burnett é grande.

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