Killer of Sheep, dirigido por
Charles Burnett e lançado em 1962, é um atestado sobre o quão torturante pode
ser a falta de perspectivas na vida de um grupo de pessoas. A idéia do limite
de trajetórias surge como uma espécie de destino estratégico, organizado, em
primeira instância, por um conjunto de relações espontâneas próprias dos guetos
afro-americanos e, em maior escala, por aqueles que administravam (ainda
administram) o racismo e as injustiças de um EUA incapaz de reconhecer as
conseqüências de sua própria história.
O filme de Burnett funciona,
antes de tudo, justamente por ocultar a escala maior da discussão, assumida
aqui como premissa óbvia, preocupando-se, assim, em investigar, com toda calma,
as conseqüências de um contexto anterior facilmente reconhecível. De certa
forma, o recorte proposto por Burnett concretiza essa visão ao recortá-la e
estendê-la, levando, propositalmente, quem assiste à exaustão. Neste sentido é
curioso considerar que a ficção de Burnett se encontra na opção que ele faz de
retirar o conforto de todos os momentos do filme. Não é o caso de uma
experiência documental, mas de uma elevação das características daquele
ambiente ao extremo.
A rotina daquelas pessoas é
desgastante e o jogo de Burnett propõe a falta de perspectivas na vida de seus
personagens como sendo análoga aos espaços que o filme oferece a quem assiste.
Reitero: o filme não faz somente captar a falta de perspectivas porque não quer
que o espectador se compadeça, simplesmente. Em outras palavras: o marasmo que
domina o filme não é sua matéria-prima, menos ainda seu objeto, mas sim seu
objetivo, sua construção fundamental. E em termos de construção, o elemento
mais primoroso no filme de Burnett está na maneira como este alimenta sua
gramática de cinema a partir da proposta inicial. Guiando seus significados,
sobretudo pelo uso de uma montagem que interpõe sequências que se completam e
se esvaziam, o filme entende que o espaço aberto de interpretação é mais
importante que significados prontos sendo atirados na tela.
O primeiro momento que marca isso
é a montagem seca que interpõe as crianças do bairro brincando às ovelhas
penduradas no matadouro onde o protagonista trabalha.
A oposição entre as sequências
percorre o filme todo e apresenta a realidade como uma substância que somente
os sujeitos pertencentes àquele cenário conseguem identificar naturalmente.
Burnett poderia, sim, explicitar os constituintes daquele recorte. Explicitá-los, no entanto, implicaria, provavelmente, na transformação do que se
mostra em fenômenos, quase anomalias, próprias de uma provocação fácil. E, em
última análise, se para os personagens daquele ambiente a falta de
perspectivas, a violência, a aridez de vida e gestos não são anomalias, mas partes oriundas (ainda que desagradáveis) do cotidiano, o ponto de vista do filme ganha força.
Há, ainda, oposições simbólicas
menos óbvias e mais espaçadas mas que, novamente, servem à construção da
metamorfose lenta de determinada realidade. É o caso da seqüência em que as
crianças atiram pedras num trem e a sequência, mais distante, em que as mesmas atiram pedras
umas contra as outras. Burnett não aponta uma lógica de causa e efeito, de
ambiente x sujeito. Pelo contrário, simplesmente situa o sentido dessa oposição
como possibilidade dentre tantas outras
Aliás, ao contrário de muitos
filmes, o ambiente em Killer Of Sheep não cria uma necessária relação de fuga.
Burnett parece acreditar que recusar as possibilidades daquele ambiente não
significa, necessariamente, rejeitá-lo em fuga, mas acreditar que é possível
moldá-lo por dentro. O ambiente é antes uma premissa que um inimigo, de certa forma. A
maneira como cada um age é um dado das possibilidades, um produto dos dilemas,
nunca uma equação pronta. Em dado momento, aliás, Burnett salienta isso, numa das sequências
mais bonitas do filme. O protagonista conversa com
alguns conhecidos que tentam convencê-lo a participar de um roubo...
...é neste momento que surge, do
escuro da casa, pela porta, a esposa do sujeito que, até então pouco
participativa, toma a frente e recusa a proposta pelo marido.
Sequência breve,
mas suficiente para projetar os vários caminhos dispostos no ambiente para o
qual o filme aponta nossos olhos.
E, como dito acima, são vários os
símbolos e metáforas. A queda do motor da caminhonete é outro ponto em que
Burnett marca sua visão. Depois de todo o esforço para levar o motor até a
caçamba da caminhonete, tudo o que resta é a inevitabilidade entregue: todos
pressentem que o motor vai cair da caçamba, o tempo da impressão é o tempo que
dura o plano. Ainda assim a tentativa se segue, quem sabe outra possibilidade
cause surpresa, a obviedade do fracasso abre fresta pra alguma esperança. Até
que o carro acelera, o motor cai, e o marasmo do esforço em vão volta como
regra.
O marasmo no filme de
Burnett é estratégico porque rejeita até mesmo as frestas que existiriam para
contê-lo. Resiste, dentro nos mais variados momentos, a recusa pelo espaço da
respiração. Logo, mesmo nos momentos de descanso do protagonista e daqueles que o
cercam, suas folgas são marcadas por vazios: as conversas superficiais na
cozinha, as conversas sem rumo na casa de amigos, os encontros nas escadas do
conjunto habitacional.
É somente num momento, na cena
mais famosa e sem dúvida mais linda do filme, que Burnett abre uma fresta para
novos ares. Na dança entre o casal, ao som de "This Bitter Earth", na voz de Dinah
Washington, a cumplicidade de marido e esposa, ainda que engessada pelo cotidiano, flutua em
outra atmosfera. No entanto, perto desta cumplicidade se tornar um momento de
entrega entre ambos, o marido se afasta da esposa, como se recusando qualquer
miragem, talvez por não aceitar o alívio na condição de exceção, de raridade.
E, aqui, vale dizer, somos ela,
levados de volta ao marasmo, ao vazio da impossibilidade, na construção de um
plano que, desde o ambiente no qual se passa até a postura da esposa, resume,
em seu simbolismo, o filme por inteiro. A luz vinda de fora vislumbra um outro cenário (um cenário melhor), mas é preciso, antes, ultrapassar a janela, romper em definitivo o obstáculo. No entanto, é desgastante fazer isso sozinha. Talvez por isso seja melhor sentar e olhar quais mudanças a luz clareia por dentro.
Encerrando, o filme de Burnett rejeita definitivamente a fuga como solução, porque os "de fora" nunca fizeram, nem farão nada por aquelas pessoas. O carro quebrado na
viagem e a necessidade de voltar ao lugar de origem definem a defesa de Burnett
de que a mudança, para aquelas pessoas, naquele contexto, só acontecerá de
dentro para dentro, e só depois de dentro para fora.
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