“Faça a Coisa Certa”, de Spike
Lee, é um filme reconhecido mais por sua estética do que por seu conteúdo. O
mesmo acontece com “Cidade de Deus”, de Fernando Meirelles. Talvez por isso, ao
menos na minha cabeça, a comparação entre ambos seja constante. A diferença
fundamental é que, enquanto o filme de Spike Lee tem no louvor à sua estética
um sinal de afastamento de determinado olhar externo que sob ele repousa, o
filme de Fernando Meirelles usa a estética como trunfo que esconde sua
superficialidade delimitadora presente do início ao fim. Digamos que, enquanto
olhar apenas para a superfície do filme de Spike Lee é uma escolha (consciente
ou não), no caso do filme de Meirelles a estética é o eixo do filme em si.
É curioso perceber, no caso de
“Faça a coisa certa”, como um filme que fala das tensões próprias dos guetos
afro-latino-ítalo-americanos passou, com o tempo, a ser objeto de
transfiguração pruma cambada de hipsters brancos à procura de seu próprio
street-credit. Isso, obviamente, não é culpa de Lee, já que “Faça a Coisa Certa”
é, sem dúvida, um dos melhores filmes a tratar do outro lado de um país tão
idealizado como o EUA. O problema está no ajuste e no interesse do olhar de
quem assiste. Para uns, o que fica do filme são os bordões, as caretas, as
camisetas. Para outros, fica a potência de um filme que nos insere, quase
literalmente, na rotina de um Brooklyn quente, colorido, em rota de colisão. “Cidade
de Deus” é o inverso. O filme em si é uma visão afastada daquilo que retrata,
expondo um mundo que se finge conhecer através de uma vitrine que, no fundo,
protege a quem assiste.
O filme de Lee funciona, antes de
tudo, por assumir a realidade, não como um modelo estático dentro do qual um
elemento principal produz reatividades, mas como uma substância plenamente cambiável,
em constante metamorfose. Em outras palavras, Lee não transforma a idéia de
realidade num fetiche. Meirelles, do lado oposto, assume a violência como
elemento de um modelo pronto, produzindo, assim, não só a violência urbana propriamente
dita, mas também gestos violentos, diálogos violentos, sexo violento, enfim, a
violência como gênese de uma realidade em versão fetiche, na qual violência e
realidade não são manifestações orgânicas, mas um só fenômeno totalmente
mecanizado. Lee desenvolve um amplo fluxo de informações, Meirelles condensa
tudo num único recorte.
Seguindo, Mookie, o protagonista
de Spike Lee, é nosso guia, logo, nos mostra a coisa por dentro. Não faz
recortes, não piora nem melhora as coisas, apenas se depara e reage a estas,
assim como as pessoas que o cercam. A fluidez dos caminhos de Mookie é a mesma
das cargas de realidade no filme, que oferecem não só a naturalidade própria da
história, mas outro ponto importante: sua imprevisibilidade. Personagens que
parecem amigos em dado momento, se confrontam em outro. Personagens que parecem
falidos num momento são exaltados em outro, e por aí vai. Já Buscapé,
protagonista de Meirelles, não compartilha conosco sua rotina, mas tão somente
seu desejo indissociável de escapar desta. A rota de Mookie se organiza sob as
frestas inseridas em sua própria trajetória. A de Buscapé só existe em função
da fuga, a todo custo, de uma condenação previamente determinada. Novamente:
Lee defende a realidade enquanto substância, logo, mutável. Meirelles defende
um modelo sólido e completo de realidade no qual nada se altera e a única
hipótese é fugir para nunca mais voltar.
O único modelo presente no filme
de Spike Lee, aliás, é o da ficção enquanto espaço de ampliação do que se
observa. A defesa desse espaço existe quando o diretor resume um cenário social
complexo em um microcosmo consagrado pelo Brooklyn, sabendo em quais chaves
operar, o que ressaltar e o que priorizar. É assim que as tensões, os dramas,
os amores, os enfrentamentos, os códigos e dilemas fazem parte da mesma
atmosfera. E isso se exemplifica em dois
momentos, comparáveis também, e não à toa, com “Cidade de Deus”.
O primeiro diz respeito ao encontro entre Mookie e Tina, em comparação ao encontro entre Buscapé e Angélica:
O encontro entre Mookie e Tina se dá no mesmo espaço, no mesmo gueto, com dois personagens oriundos e fundados sob a mesma atmosfera. Já o encontro entre Buscapé e Angélica se dá em outro espaço, literalmente. Além disso, a personagem de Angélica habita outro cosmos, é a antítese completa do protagonista, como se a única chance do sujeito, mais uma vez, fosse “escapar” de seu próprio mundo e, de certa forma, de si mesmo. Por fim, a própria dinâmica da cena define lugares distintos. Mookie e Tina se encontram num quarto, espaço íntimo, que nos auxilia a compartilhar das sensações postas em cena. Buscapé e Angélica se encontram na praia, espaço amplo, mais distante, que nos coloca numa espécie de voyeurismo forçado.
A questão aqui é, acima de tudo, entender que essa diferença produz dois olhares: como dito acima, em “Faça a Coisa Certa”, vivemos junto com Mookie, em “Cidade de Deus” observamos Buscapé tentando viver. Estamos, portanto, neste último caso, sempre do lado “de cá”, torcendo pra que ele venha também. O efeito, em última instância, é que, no filme de Lee, o cenário ao redor é vivo e pulsante (fator exaltado pelas cores marcadas), e isso engrandece seu filme. Já no filme de Meirelles, o cenário é, bem, só um cenário. E embora o filme confunda vida com leituras frenéticas, o que cerca seu protagonista não ultrapassa a lógica do pano de fundo, elemento que retira potência do filme.
Há, ainda, outro momento de
comparação: o estopim de violência em ambos os filmes. Em “Faça a Coisa Certa”, embora o estopim de violência seja entre as pessoas do bairro, o
pandemônio se instaura depois que um morador do local é morto pela polícia e, a
partir disso, todos resolvem atacar a Pizzaria. É como se, de certa forma, o
ataque simbolizasse o ódio contra algo que é anterior, que não é próprio
daquele ambiente, mas se manifesta, querendo ou não, a partir das premissas do contexto. A pizzaria em chamas poderia ser lida, assim, como a idealização de um não engessamento, de que a substância da
realidade, sendo mutável, tão logo é volátil, prevendo a autodestruição como processo de transformação
interna.
(por isso, aliás, o encontro entre Mookie e Salvatore que encerra a sequência é estratégico no filme)
Não é este, no entanto, o caso de “Cidade de Deus”. Novamente, a cena coloca o
protagonista na condição de inevitabilidade. O ambiente já está dado, pronto,
imutável, resta a Buscapé escapar dali (ou não). Não há processo anterior, não
há um núcleo de origem, a violência é quase uma entidade e o caminho é
primordialmente o do eterno retorno (o roteiro circular só faz exaltar isso,
inclusive). É importante dizer que a comparação, aqui, prevê as dinâmicas sociais sugeridas por cada filme como núcleos distintos, sabendo que compará-las seria impreciso. O ponto mais problemático é que o afastamento notório no filme de Meirelles é uma escolha que denota a presença de uma zona de conforto cinematográfica. "Cidade de Deus" não ultrapassa superfícies, pelo contrário, simplesmente as reveste de outra coisa.
Assim, novamente: “Faça a coisa
certa” nos obriga a lidar com as mudanças porque consegue nos fazer parte
destas (isso nos agradando ou não), ao passo em que “Cidade de Deus” propõe
quase um discurso condescendente, do tipo, “Vai garoto, sai daí, venha pro
nosso lado, pro nosso paraíso”. Talvez por isso “Cidade de Deus” agrade mais do
que “Faça a Coisa Certa”. E talvez por isso este último seja mais lembrado por
sua superfície do que por aquilo que o define de fato. Porque “Faça a coisa
certa” incomoda ao não oferecer distanciamentos, enquanto “Cidade de Deus” só
existe em função da distância que promove. Em suma: “Faça a Coisa Certa”
entende a rua porque fala a partir dela, curiosamente, de maneira muito mais
sensível, detalhista e precisa. “Cidade de Deus” fala da rua, mas de longe. Da
rua que só se enxerga do alto de alguma varanda, e que mesmo de frente pro
morro, bem...continua sendo varanda.
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