25/09/2015

TOUKI BOUKI: UM CONTO AFRICANO CONTRA OS ESTEREÓTIPOS

Touki Bouki é um conto africano em formato cinematográfico. O cineasta senegalês Djibril Diop Mambéty articula, neste filme, como poucos, essa lógica. Mambéty talvez seja, junto com o também cineasta e conterrâneo Ousmane Sembene – considerado por muitos o pai do cinema Africano – um dos maiores e mais subestimados talentos do cinema fora do eixo América do Norte / Europa. Subestimado, sobretudo, em função do preconceito lançado desde sempre sobre África pelos olhos ocidentais. No máximo, o título que oferecem a Mambéty é de “Godard Africano”. Mas ele é muito mais que uma sombra.


Produzindo seu filme com uma quantia de, hoje, inacreditáveis 10 mil dólares, Mambéty é dono de uma apuração estética notável, além de pontuar suas narrativas com uma escrita de humor peculiar. É interessante perceber como o filme do diretor dribla os limites técnicos organizando seus pontos de vista em códigos que, acima de tudo, se manifestam na gramática de um cinema que não precisa de muito pra desarticular clichês. Parece natural dizer, assim, que a importância estética de Touki Bouki, per se, sustentaria o filme. A estética é, no entanto, só o começo.


Filmado num Senegal em processo de adaptação pós libertação da opressão colonial francesa - em independência oficializada somente em 1960 -, Djibril entrega em Touki Bouki a visão de uma áfrica pós-colonial que tenta se reestruturar ao passo em que rejeita, indiretamente, já na década de 70, os estereótipos e preconceitos produzidos e reproduzidos a respeito do continente (até hoje). O ponto fundamental é que a diferença produzida por um olhar interior, aqui, é paradigmática.


Em comparação a centenas de filmes que repousam sob o continente africano seus olhares ocidentalizados, geralmente interessados, em maior ou menor grau, por reclamar a própria indulgência perante a história, Touki Bouki é um tratado antiesteriótipos; desde o casal negro de protagonistas até as oposições simbólicas construídas. A primeira sequência que chama atenção, aliás, é tão sutil quanto genial.



O protagonista está num campo aberto cercado por cabeças de gado. Com uma corda em mãos, dá a impressão de que pretende laçar um dos bois. Ele gira o laço, lança-o, mas quando acerta o alvo, entendemos que na verdade se tratava da motocicleta do sujeito, que ele agora amarra em volta de uma árvore. Motocicleta esta com a qual ficamos no plano que encerra a sequência e que, não à toa, tem o crânio de um animal adornando sua dianteira. Oposição por símbolos entre um Senegal que se almeja e um mais antigo, que sempre existirá, de uma forma ou de outra? talvez. Há ainda, nesta mesma sequência, a irônica trilha em francês que percorre vários momentos do filme. É o jogo de Mambéty. Os símbolos estão dados, as aberturas de interpretação todas estrategicamente dispostas.


Outro momento (dentre tantos) de igual simbolismo merece destaque.



Após roubarem as roupas do dono de um hotel e usarem o carro com motorista particular para desfilarem numa parada festiva da cidade, o casal de protagonistas se depara com um grupo realizando uma espécie de dança ritualística. O grupo dança e canta enquanto o casal fuma e faz pose. Novamente, a oposição simbólica é dada. Não há, porém, recusa de uma imagem pela outra. Há, na verdade, a hipótese de escolha. As duas imagens são parte de uma mesma imagem mais ampla (do país africano em questão). Assim, se misturam, se afastam e se digerem, simultaneamente. A fluidez de possibilidades permeia o filme por ser a mesma fluidez que se dá agora na realidade do país e daquelas pessoas. E essa impressão se concretiza num terceiro momento.



Numa belíssima sequência em montagem paralela, o casal de protagonistas acaba se separando. A protagonista segue acreditando (ainda que a contragosto) na ideia de que a França oferece caminhos mais interessantes. E embora ela seja uma das poucas pessoas negras à bordo do cruzeiro (em dado momento um plano aberto salienta isso com primor), novamente, as escolhas estão postas. De mesmo modo, o protagonista sequer entra no navio, voltando, quase em desespero, ao encontro de sua motocicleta (ou de seu Senegal), anteriormente perdida, que embora seja forte e o tenha ajudado tanto, precisa de reparos e ajustes. Os símbolos se rejeitam e se completam ao mesmo tempo. Nada é definitivo em Touki Bouki.

A fábula de Mambéty é minimalista, concisa, despreocupada em atingir uma lógica universal que direcione todas as pessoas que o assistem para um mesmo lugar, sem entraves, sem dúvidas. A contrariedade dos estereótipos tem potência justamente por se assumir, nem como discurso previamente estabelecido nem como objetivo elementar. Os estereótipos se fragmentam pelo simples fato da história ser contada por um olhar intimamente ligado a ela. O diretor consegue organizar, nos detalhes, sentidos mais amplos que não se atiram aos olhos de quem vê, porque, no fim, Touki Bouki não é um filme sobre certezas, mas sobre possibilidades. Mambéty não está interessado em dar respostas, mas em fazer perguntas. E essa combinação, quando bem conduzida, produz grandes filmes.



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