Câmara de Espelhos, filme dispositivo dirigido pela cineasta
Dea Ferraz, parte de uma tarefa sensivelmente espartana: sublinhar a
problemática de discursos opressivos que se fortalecem e violentam justamente a
medida em que se diluem na organização de determinada estrutura social e cultural.
O desafio de sublinhar um inconsciente coletivo (embora nem tão inconsciente
assim) de modo a retirá-lo de sua camuflagem e, mais do que isso, expor sua
natureza violenta. É um procedimento, por sua própria dificuldade, suscetível a
condições dúbias, uma vez que pensa e repensa escolhas o tempo inteiro.
Inicialmente, sob a vigilância do dispositivo (e do olhar de
Dea, indiretamente) construído para o filme, parece haver certa medida de
cuidado, por parte dos homens observados, a partir de determinadas respostas.
Não é o caso de medir a agressividade nas falas (qualquer fala ali sempre será
mais agressiva à uma mulher do que a mim, enquanto homem, por exemplo) mas
constatar que há um movimento de explicitação crescente da natureza machista
dos discursos.
Partiremos de comentários sobre relações de trabalho (quem
banca a casa? etc) e terminaremos com a afirmação do feminicidio justificado
(se a mulher trai, é passível de morte). A própria trajetória dessas colocações
é comum aos espaços que o dispositivo do filme emula (a sala de casa, a mesa do
bar, a reunião depois do trabalho). A ideia de vigilância (seja da mulher que
os observa, seja da câmera propriamente dita), constrange, a princípio, porque desautoriza
a certeza de perpetuação impune daquelas falas, uma vez tornadas públicas.
Câmara de Espelhos tenta, em certa medida, retirar o
machismo do status de anomalia social, de tema relacionado ao caráter ou índole.
Mas, e esse é o ponto mais fundamental: mesmo numa percepção mais cotidiana,
há, reitero, uma crescente explicitação dos discursos violentos dados pelos
homens. Perdemos a vergonha. “Perdemos”, aqui, porque se eles lá começam a
discursar o machismo mais abertamente, nós cá, na plateia, reagimos também. Uns
em silêncio, outros em contorcionismo, e mesmo outros que gargalham. Nossas
reações marcam, sim, posições no filme. E não são, definitivamente, arbitrárias
a ele. O desenho de som, por exemplo, incentiva esse processo, uma vez que
constrói uma atmosfera na qual as vozes no filme e na plateia se confundem.
O valor de Câmara de Espelhos está inserido na sua
impossibilidade de encerrar o olhar que repousa na dinâmica do dispositivo. O
filme depura o discurso dos homens em cena, mas não os demoniza, porque não se
trata aqui de uma individualização da consciência coletiva, mas o inverso. Dea,
na direção, não toma essa escolha para preservá-los. Pelo contrário, busca
evitar que existam espaços de redenção para os homens que assistem ao filme. A
fala daqueles homens sai de suas noções pessoais de mundo rumo ao consenso da
estrutura que legitima a violência presente, em maior ou menor grau, nesses
mesmos discursos.
A escolha de desnudar, ao menos até a segunda metade do
filme, a problemática dos discursos através da chave de acentuar o ridículo ali
circunscrito é interessante. Porque não provoca, aparentemente, apenas um tipo
de reação: haverá mulheres que darão risada das falas toscas proferidas pelos
homens; haverá homens que darão risada por concordarem com a fala dissimulada
dos homens na tela. Haverá quem não tenha reação alguma. O dado do riso (mais
até, da reação) se justifica porque o filme não quer explicar como as falas capturadas
devem ser interpretadas, mas como podem ser, a depender do lugar de quem escuta.
Até aqui o filme é poderoso. No entanto, embora frutífero à várias discussões,
dois elementos colocam o filme de Dea num impasse.
A figura do ator inserido no dispositivo é um dos elementos.
Porque se pensamos na figura do ator como mediador, as falas colocadas pelo sujeito
parecem apenas sublinhar tensionamentos que ali já germinam espontaneamente (a
fala de um dos homens observados, quando relata sua própria experiência sexual,
na parte da “menina que daria pra Cem Homens”, cumpre essa função mais
espontaneamente). Porque a mediação do ator anula as idiossincrasias das
próprias tensões retidas no dispositivo. Na condição de homem (principalmente,
diga-se, se sob os signos de progressista, libertário, consciente) diante do
filme, há, sim, uma tendência aberta de proteção moral de boa parte do público
masculino na figura do ator (que é, indissociavelmente, intelectual, branco, em
suma, um discurso de autoridade). Essa é uma interpretação.
A outra interpretação é a de que o ator nunca fala por si
mesmo. Ao replicar as falas que Dea Ferraz articula através de um ponto
eletrônico, o argumento em defesa da inserção do ator poderia se dar através de
outras perguntas: se fosse a própria diretora no lugar do ator, os homens, lá e
cá, lhe dariam o mesmo status de fala? Se fosse uma mulher cumprindo o lugar do
ator, haveriam aplausos (fato que presenciei) para ela como há para ele?
Câmara de Espelhos repousa no seguinte dilema: demonizar abertamente
os homens inseridos no dispositivo a partir de seus discursos implicaria,
talvez, afasta-los como anomalias, transpondo o machismo para uma questão
específica de caráter, de índole. Por outro lado, a escolha por imagens que
suscitam falas de um machismo “cotidiano”, digamos, implica no risco de atenuar
o efeito do dispositivo, ao olhar, de nós, homens que habitamos fora da
vigilância do dispositivo. O dispositivo, afinal, não pode punir.
A questão derradeira e mais sincera é pensar, então, se as
chaves deixadas em aberto pelo filme, ficam em aberto por falha do próprio
filme e seu dispositivo, ou se porque é simplesmente impossível que um filme dê
conta de encerrar, em si, toda a complexidade retórica e prática do machismo,
por mais que tente, por urgência.
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