10/11/2016

Janela Int. de Cinema do Recife - A cidade onde envelheço



O novo filme da cineasta Marília Rocha, sua primeira ficção, se apoia em duas construções que se sustentam, enlaçadas: o dispositivo de certo naturalismo dramaturgico marca rara e bonita espontaneidade no micro cosmo das experiências desveladas no filme. E a afirmação de uma intimidade prosaica que nunca se engessa, embora exista dentro de um rigor estético maturado pela própria cineasta.
É curioso como A Cidade Onde Envelheço absorve uma abordagem que remete a determinado cinema, europeu sobretudo, organizado pela observação do que, num primeiro momento, parece banal e frívolo. A jornada de estranhamento das duas mulheres portuguesas com os recortes do imaginário brasileiro que identificam é, acima de tudo, muito pessoal.
Formalmente o filme é, sim, estonteante. Interessa ver como o olhar direto e espontâneo de Marília Rocha, em fluidez com as duas atrizes (e coo-roteiristas), sobre a intimidade no seio de uma cidade estranha se ajusta às condições de luz e espaço construídas pela foto de Ivo Lopes Araújo, por exemplo. A direção captura a tradução espontânea da história que conta e, por dentro, a fotografia germina o caráter de uma, pode-se dizer, jornada de afetos.
A questão mais difícil de A Cidade Onde Envelheço é que, partindo de um lugar tão particular e específico, íntimo mesmo na forma como se traduz em cinema, o filme tende a restringir seus diálogos com determinadas experiências, colocando-as num segundo plano.
A cidade onde envelheço parece saber que Neguinho, jovem negro e colega de trabalho de Teresa, é parte constitutiva de outra realidade. Realidade essa que o filme reconhece, honestamente, não acessar. Assim, Neguinho diz estranhar a forma como Francisca fala, ao conhece-la. A distância, uma vez reconhecida, se incorpora no fluxo do filme.
As protagonistas vivem o paradigma de ajuste entre serem estranhas à cidade, cidade essa estranha à elas também. É curiosa, aqui, uma digressão: exercício divertido no filme é perceber a incorporação de signos populares do Brasil num formalismo estético que, junto à naturalidade indissociável das duas protagonistas (são portuguesas), carrega uma atmosfera cosmopolita bastante forte.
Francisca entra no bar. Num frame poderia ser, aquele local, um bistrô francês. No instante seguinte, porém, se revela um bar de esquina que vende litrão de Itaipava. E a atriz também se adapta ao ambiente. Essa simbiose é, no mínimo, intrigante. Ver signos atados a certa atmosfera, projetados agora em outra, aceita aberturas de identificação que estão ali, embora dispostas apenas como pano de fundo.
O que talvez impeça um diálogo mais amplo entre o filme e parcela de quem assiste é que sua perspectiva é muito específica, e parte de um lugar também muito específico, numa lógica que acaba não oferecendo muitas posições além da observação de uma estranheza observada e traduzida pelas protagonistas.
Diálogos que enquadram personagens em campos isolados mesmo quando falam com outras pessoas. A dificuldade de compreensão dos diálogos suprimidos pelo sotaque e pelo tom de sussurro empregado, o espaço que a câmera oferece para que o rigor estético desvele, e não imponha, a intimidade tão cara ao filme.
Assim, o filme de Marília Rocha abre e encerra seu próprio paradigma: será, por essência, objeto íntimo, pessoal e próximo, sim, de determinadas experiências. Será também, porém, e ao mesmo tempo, muito distante ao rigor de outras tantas experiências. Identificadas, talvez, por partes pormenorizadas no filme.
Negocia-se, a todo tempo, sua existência na trajetória entre ser um filme sobre distancias e ser, também, um filme distante. São, então, os referenciais dos respectivos lugares que o olhar de cada pessoa ocupa, no exercício de observação da intimidade amplificada pelo filme, que definem qual dos caminhos pesa mais. Se observamos Teresa e Francisca diretamente (elas raramente se encontram em espaços públicos), elas também nos observam indiretamente (a desordem dos azulejos, a impressão sobre os costumes, e mesmo a experiência de imersão num Brasil punk que emula o fim dos anos 80).
Por isso reconhecer o mérito estético e a qualidade propositiva de A cidade onde envelheço passa por reconhecer algo que, ao menos pra mim, aqui, é tão obvio quanto fundamental: um filme sempre será mais facilmente acessado, mais próximo, digamos, de alguns olhares do que de tantos outros. Uma vez aceito esse fato, o reconhecimento das distâncias pelo próprio filme preserva genuína complexidade.
Tornando interessante o gesto de interpretar a geografia dos afetos que Marília Rocha investiga junto aos movimentos de Francisca e Teresa. Mesmo que a experiência de vida ali exposta, puramente, esteja posta numa incontornável refração, entre o meu olhar (enquanto brasileiro, jovem, negro) e os dramas do filme. Entre a geografia dos meus afetos e aquela presente em A cidade onde envelheço há, sim, um abismo. Que, mesmo abismo, não deixa talvez de ter sua beleza.

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