O lado mais interessante de
festivais é a possibilidade de alinhar num mesmo enquadramento de curadoria,
olhares diversos sobre o fenômeno do cinema enquanto, essencialmente, meio de
interpretação do mundo. É curioso poder assistir, assim, filmes como Estado Itinerante e Heterônimo. Em níveis muito distintos de domínio estético e
narrativo, chamando, justamente por isso, a atenção.
ESTADO ITINERANTE
Filme mineiro, dirigido por Ana
Carolina Soares, Estado Itinerante é
exemplo vigoroso do completo domínio do específico cinematográfico, das
ferramentas que transportam ideias, discursos e interpretações para o interior
de um corpo de cinema consistente.
Ana Carolina deposita, junto à equipe
do filme, um olhar peculiar a respeito da violência contra a mulher, no Brasil.
Peculiar porque assume o risco de inverter as noções associadas a esse fato
social, organizando o dado da violência, nem enquanto anomalia, nem enquanto
“fenômeno” social, mas como representação intrínseca à existência de tantas
mulheres, elemento constituinte da maneira como se relacionam (ou, mais, se
protegem) do mundo. A violência aqui está sob a impressão de quem a sofre.
Porque, e essa é a premissa
fundamental do filme, o maior sintoma da violência contra a mulher, ao menos no
Brasil, é o silêncio. Por isso a incomunicabilidade é a chave mestra de Estado Itinerante. Mesmo os homens,
agentes principais da violência com a qual a cobradora de ônibus, Vivi, se
defronta todos os dias, são apagados da tela, tornam-se vultos. Porque a
inferência do filme é a de que o feminicídio responde a um sistema que
ultrapassa a individualização da conduta violenta nesse ou naquele homem.
Ainda, símbolos de um suposto universo masculino são reorganizados com mulheres
ocupando esses espaços. E todos os elementos consolidam, mais uma vez, o
silêncio como grande sintoma.
Tomando o silêncio como
fundação de sua investigação, a violência em Estado Itinerante surge sempre sob a noção de espectro. Está na voz
do jornalista, encapsulada pela janela de uma casa, que descreve estatísticas
do feminicidio e as formas mais comuns de consolidação dos crimes dessa
natureza; está no som cortante e invasivo das motocicletas guiadas por homens
que atravessam abruptamente os enquadramentos de uma sequência que, segundos
antes, estabelecera a cumplicidade entre quatro amigas de trabalho; está na
impressão de que a protagonista, Vivi, refuga, a todo momento, sua volta pra
casa. Ao ponto da câmera então observar Vivi sentada na janela do ônibus, como
se sentada à janela de seu quarto.
A escolha de Estado Itinerante por organizar no
interior do corpo de Vivi a violência que, de outras formas, se manifesta
externamente, cria, por efeito, a partir de sua incomunicabilidade inicial, uma
outra noção de comunicabilidade. Noção esta que, mais profunda, responde à
carne em tela, sendo para isso, e também por isso, puramente cinematográfica.
Na cena do bar, da longa dança
entre Vivi e a personagem negra, travestida, que surge vagarosa por fora do
enquadramento, completando o plano, o olhar de cumplicidade lançado por Vivi, e
capturado sutilmente pela câmera basta à aproximação. São personagens que, no
limite, compartilham experiências de violência comuns e que, como efeito,
trazem sim os hematomas físicos, psicológicos e emocionais, mas também a
capacidade de reconhecer-se, profundamente, na outra que compartilha dos
silêncios, da ruína interior.
Dessa cumplicidade surge uma
terceira, que evoca a tentativa de compreensão da personagem por nós que a
vemos, ao ponto de seu sufocamento pelo silêncio travar nossa leitura numa
agonia incessante. Quando, então subitamente, a personagem começa a rasgar sua
própria roupa, desvelando as camadas que a cobrem, arrancando a gola alta que a
sufoca, gritando através das impressões que a violência legitimada por
estruturas, e perpetrada por variados tipos de homens, arquiva em seus
hematomas. A câmera não vai até a personagem. Não precisa. É a força do gesto
da personagem que nos puxa.
O trauma, o silêncio e a
alteridade são, aqui, dados consecutivos da mesma equação, da mesma organização
humana e social de Vivi. Estado
Itinerante é exemplo importante do domínio de uma promissora e já muito segura
cineasta, sobre suas próprias escolhas e defesas. Estéticas, mas, ao mesmo
tempo, narrativas. Particulares, mas, ao mesmo tempo, extremamente urgenciais.
HETERONIMO
Heteronimo, dirigido por Vitor Medeiros, de saída, suscita questionamentos primários
assim que se encerra. O que move a jovem protagonista para além do fato de
gostar de francês e estar envolvida com um desconhecido pela internet? O que
move a professora de francês para além do fato de preservar pela jovem
protagonista um desejo sexual, no mínimo, problemático? Por que ela busca na
internet, e não na vida real, algum contato social? Ela é, afinal, tímida,
antissocial, impaciente, desinteressada? As perguntas acabam sendo mesmo retóricas,
já que durante todo o filme não há qualquer indicio de resposta, de razão ou de
consistência, em ordem tal que acaba fragilizando o corpo narrativo por
inteiro.
Parecem haver cisões no filme,
do caminho de uma projeção das ideias à confirmação destas mesmas ideias dentro
de um aspecto formalista. Heteronimo
não consegue operar com consistência as chaves evocadas, ainda que
superficialmente, pelo próprio filme. Não se trata de pensar um “certo” ou
“errado” na hora de filmar, enquadrar, movimentar, mas de atestar que o erro
existe quando prejudica a própria intenção do filme. Os planos, aqui são sempre
didáticos, os processos de enquadramento guardam certo amadorismo, elementos que
não realocam o filme num campo de rigor estético, de domínio da realização, que
o assunto tratado demanda.
Assim, defender esses erros
como escolha estética é um gesto generoso demais. Com esforço, o filme é, reiterando,
muito didático. A rigidez dos enquadramentos que se rompe num zoom in meio
desajeitado. O celular colorido, símbolo da persona da professora de francês, e
o celular branco, símbolo da persona que a professora esconde. Há, por falta de
termo melhor, uma insegurança na realização, que acaba por se sobressair mais
que o restante todo. Esse entrave entre pensamento e execução, de como
transportar uma ideia ou ponto de vista para um corpo de cinema consistente,
causa, no limite, certo desconforto na própria diegese do filme, minando mesmo a
potência contida em alguns poucos momentos.
A cena da masturbação é o
exemplo mais sintomático. Se a personagem assume envolvimento com a imagem que
constrói de outra pessoa, ao ponto de ativar em si uma chave de desejo, mesmo
que estranha e problemática, o olhar isento e maquinário sobre a cena não está,
ali, alinhado à perspectiva momentânea de sua protagonista. A relação entre
câmera e personagem é contraditória, num mal sentido. Ao mostrar a cena de
maneira fria e burocrática, Heterônimo,
na verdade, não reflete sobre a natureza do fato. Propõe-se apenas a prestar
sua confirmação de um julgamento anterior, através da exposição e empréstimo do
corpo de sua protagonista à adequação de uma certeza já consagrada, no filme, a
respeito das relações virtuais.
A incerteza de Heterônimo é curiosa, mas não chega nem
perto de sustenta-lo como defesa das ideias que o originam. O elenco (e a jovem
protagonista, sobretudo) parecem, por vezes, intimidados pela câmera, ou mais
até, pela própria ideia de fazer um filme. Desconforto esse que
inevitavelmente, depois de algum tempo, transparece ao limite da tela, apagando
rastros de qualquer outra impressão.
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